O Sofá

por António Durães

Havia um sofá no meio do palco.
Caso a cena, claro, precisasse de um sofá.
Se não,
Ia para um canto,
Posto em sossego, excepto na hora do ensaio,
Quando afinal sabíamos uns dos outros
E nos encontrávamos nos seus braços escancarados de sofá.

Estava lá e estava ao serviço dos nossos corpos
Que,
Depois de um dia de trabalho,
Apesar da hora avançada, apesar do cansaço,
Se dedicavam às coisas da representação
(acho que só eu não fazia mais nada.)
E que quase viviam naquele sofá.

Esgotava a lotação com três, mas acomodava generosamente
Quatro ou cinco.
Os braços do sofá ajeitavam-se para mais dois.
As costas do sofá estavam reservadas para os tantos
          que nelas se conseguiam empoleirar.
E até o chão, em frente, era lugar para mais uns quantos,
Encostados às pernas dos que se sentavam nele,
E às vezes adormeciam, e faltavam à cena.

Habitávamos o sofá antes e durante os ensaios.
Saíamos do sofá para a cena e regressávamos logo que
Terminada a nossa parte
Aguardando a próxima.

E havia o sofá depois do ensaio,
Quando ficávamos para duas de conversa
Rente ao que acabáramos de fazer.
Alguém trazia umas bolachas, uma garrafa de vinho fino…

E adiávamos a partida, a separação,
Com saudades, talvez,
Ou apenas porque esperávamos resolver a nossa vida
De actores e atrizes perdidos
Abandonados pela musa

Entregues à sua sorte de mortais sem destino,
Amadores empurrados pelas ondas que vinham daqui para ali,
Em vagas que não adivinhávamos a fortaleza
Nem o ritmo.

Éramos coisas arremessadas contra o molhe
Coisas humanas em vias de naufrágio,
Afogamento compulsivo
Quarenta litros aos cem,
Desesperadamente apaixonados pela arte
Ou nem isso,
Esperançosos de que o teatro nos salvasse.

Agora, sempre que regresso aos sítios deste antigamente,
Encontro alguns dos amadores antigos habitantes do sofá,
Apaixonados ainda: uns sem treino, outros com a prática adiada.
Uns são carpinteiros; outros pescadores; outros empregados do
Comércio, outros reformados; alguns morreram.
O sofá já não existe.
Nem o palco.
Nem o pavilhão em cujo topo estava.
Nem a tabela de basquete que interrompia o palco
E que tínhamos de desmontar para fazer ensaios
Depois de lançar umas bolas ao cesto.
A conversa passou para
Outras bocas, outras almas, outros anseios,
Outros assuntos, outros assentos…

De entre todos, o sofá, talvez tenha sido o único que ficou,
Irredutível no seu papel de sofá até ao fim.

Até que, um dia, partiu
No incêndio que ainda hoje mantém escancarada a bocarra
Na rua da república.

Um sofá, à espera que alguém
Figurativamente se sente nele
E se salve.


Poema composto para a Festa de Apresentação da Associação Odezanovedejunho – no dia 22 de abril de 2025 à tarde, na Assembleia Figueirense – onde foi dito de viva voz pelo autor, que o dedicou expressamente a Mário Alberto Ribeiro Ferreira, o actor Mário Bertô, que se encontrava entre o público.

Foto de Paulo Madureira.