por Owen Schalk
tradução e introdução por Carolina Campos
ilustração (fotomontagem digital) por Fernando Campos
Quem já leu o Manifesto d’Odezanovedejunho (que pode ler ou voltar a ler no nosso site) saberá o que pensamos sobre as supostas ofertas de arte e cultura que tanto prevalecem por este país fora e nos seus écrãs, que apelam ao mínimo denominador comum e consequentemente reduzem tudo o resto a esse nível. A Passarola apresenta hoje uma brilhante desconstrução dos processos através dos quais isto acontece, as razões por detrás deles, as suas consequências, o que pode haver para além deste marasmo, e como o atravessar para chegar lá. Este texto é uma tradução inédita de “Disney, Salò, and Pasolini’s inconsumable art”, ensaio de Owen Schalk originalmente publicado online na Monthly Review em Novembro de 2021. Owen Schalk é um escritor canadiano, nascido em 1998 e autor/co-autor como jornalista de dois livros sobre políticas externas e domésticas do Canadá, e com obra publicada em várias revistas como ensaísta e contista. Faz também parte de grupos activistas de solidariedade com organizações cubanas, palestinianas, panamenhas e burquinabé. Podem saber mais sobre ele no seu site, e começar a ler o ensaio que escolhemos apresentar já aqui abaixo, pela primeira vez em português, com a permissão expressa do seu autor.
Disney, Salò, e a arte inconsumível de Pasolini
A crescente consolidação da indústria do entretenimento moderna por uma pequena clique de gigantes multinacionais do streaming é o próximo passo naquilo a que Max Horkheimer e Theodor Adorno chamam a “standardização do estilo” na arte consumida pelas massas. O estilo não é conteúdo, nem é forma. Está acima destes elementos; molda-os e contém-nos. O estilo é a manipulação pessoal do conteúdo e da forma através da qual um artista codifica a sua visão individual no seu trabalho. Na indústria do cinema moderna, contudo, o estilo é standardizado com a mesma racionalidade tecnocrática que desculpa a exploração de trabalhadores à larga escala em nome da maximização dos lucros. Na mente tecnocrática, o estilo torna-se outra barreira a conquistar, outra fronteira a forçar violentamente no sentido de uma homogeneidade lucrativa em cujas estruturas se pode confiar para gerar receitas massivas para a indústria, enquanto se limita os caminhos pelos quais um consumidor pode descobrir uma nova consciência crítica através da arte.
A Netflix e outros gigantes do streaming são a apoteose do ímpeto para uma cultura de massas governada pela lógica da maximização tecnocrática do lucro. A indústria do cinema é, claro, há muito tempo controlada por corporações guiadas por lucros que impõem fórmulas fáceis de digerir nos seus artistas: um protagonista com quem todos se podem relacionar, um romance encantador, uma estrutura típica em três actos, etc. Contudo, o uso de um método algorítmico pela Netflix como ditador do estilo é a inevitável redução de um sistema tecnocrático no qual toda a responsabilidade é fielmente deferida a processos feitos por máquinas que os humanos imbuíram de omnipotência infalível. Cary Fukunaga, realizador da série original da Netflix Maniac, admitiu isto numa entrevista com a GQ Magazine. “Porque a Netflix é uma companhia de dados,”, disse ele, “eles sabem exactamente como os seus espectadores vêm coisas, portanto podem olhar para algo que estás a escrever e dizer, Nós sabemos que baseado nos nossos dados, se fizeres isto vamos perder X espectadores. É uma maneira diferente de fazer observações, Não é do género, Vamos discutir isto e talvez eu ganhe. O argumento do algoritmo acaba sempre por ganhar.” Ele depois acrescentou: “Foi um exercício incrível…Não tenho dúvidas de que o algoritmo terá razão.”
A Walt Disney Company, a segunda maior companhia de entretenimento do mundo a seguir à Comcast Corporation, há muito que delega os seus processos de criação de histórias a tecnologias de inteligência artificial (IA). Em 2017, a companhia usou “redes neurais” de IA para examinar a base de dados de histórias do site de respostas Quora, interpretanto gostos como “um indicador de qualidade narrativa” e analisando os posts mais apreciados para procurar estruturas e eventos recorrentes que explicassem a sua popularidade entre os utilizadores. O objectivo desta análise era refinar as tentativas da Disney de prever a popularidade de certos conteúdos e formas. Neste aspecto, a companhia também já usou “factorized variational autoencoders“, ou FVAEs, para filmar as respostas faciais de espectadores durante exibições para prever reacções emocionais a eventos no écrã e consequentemente usar esta informação para gerar histórias que melhor manipulem as emoções do consumidor.
A manipulação emocional é uma componente chave do cinema, da indústria da publicidade, e do marketing às massas de forma geral, mas a tecnocratização desta manipulação está a alcançar novos níveis com a ubiquidade de análises comportamentais e tecnologias de feedback cibernético que procuram criar “experiências de visualização personalizadas” para os seus consumidores. Isto é, essencialmente, serão consistentemente dados aos espectadores elementos de histórias e estruturas narrativas quase idênticos, e eles nunca serão desafiados a interagir com o conteúdo a um nível intelectual mais profundo. William Burroughs estava portanto correcto quando escreveu que “o homem ocidental está a externalizar-se a si próprio na forma de engenhos”, mas talvez tivesse acrescentado que esta externalização – da criatividade humana, da emoção, dos desejos basais – está a ser gerida por uma classe alta exploradora com o objectivo de extrair receitas eficientemente de uma população passiva e facilmente apaziguada.
Seria desonesto dizer que não existem alguns cineastas com estilos verdadeiramente singulares a trabalhar dentro destas estruturas (David Lynch talvez seja o exemplo mais proeminente), mas a sua assimilação nos serviços de streaming é usada para reificar, e não minar, a standardização dominante do estilo. Cineastas como estes são incluídos para cumprir quotas de ter um “estranho”, um “surreal”, ou outro artista definido de forma redutora que, como personificação de um determinado estilo nas “margens”, ajuda a enraizar em vez de subverter o status quo degradante das produções culturais do mainstream.
Dado que os cinemas sofreram com as medidas de encerramentos e confinamentos devido à covid-19, e que o uso de serviços de streaming se tornou ainda maior que durante a era pré-pandemia, seria razoável presumir que o futuro do entretenimento das massas estará nos produtos guiados por algoritmos e produzidos por IA da Netflix, Disney Plus, e outros. Resumindo, os gigantes do streaming e companhias mediáticas multinacionais continuarão a subjugar conteúdo e forma – estilo – a tecnologias impessoais cujo único propósito é calcular a lucratividade de cada potencial investimento. O estilo está a ser moído a pó nas rodas dentadas de uma tecnocracia autoritária de meios de comunicação de massas. Está a ser convertido numa arma para bloquear em vez de desafiar. Está a ser tornado totalmente subserviente a novas estruturas de reprodutibilidade mecânica (ou talvez mais precisamente, reprodutibilidade algorítmica), que são guiadas somente por tecnologias cada vez mais sofisticadas de maximização de lucros.
A Escola de Frankfurt entendeu que a lógica do capital inevitavelmente esmaga todos os elementos não comodificáveis do estilo e substitui-os por produtos facilmente digeríveis sem qualquer qualidade edificante. Adorno lamentou que esta standardização do estilo produzisse obras que eram anátema de grandes artistas como Samuel Beckett e Franz Kafka, em cujas obras ele via uma mimesis singular e irreplicável da condição humana em vez de um modelo rígido de lucratividade. Ele e Horkheimer notam que em muitas sociedades pré-capitalistas, obras de arte eram veneradas como “magia…algo espiritual, uma manifestação de mana” – no caso da indústria do cinema moderna, contudo, todas as qualidades indefiníveis da arte foram erradicadas. De acordo com a sua análise histórica, a indústria do cinema imprime as suas convenções na consciência dos espectadores de uma forma que reproduz mas não expande as suas mentes: “[os filmes] estão construídos de tal forma,” escrevem eles, “que a sua compreensão adequada requer um pensamento rápido, observador e conhecedor mas positivamente priva o espectador de pensar…[Os filmes] podem ser consumidos alertamente mesmo num estado de distração.”
Os modos de produção através dos quais as comodidades da indústria do cinema são consideradas prontas a consumir pelo público, e portanto lucrativas para os produtores, incentivam a homogeneidade, resultando em filmes confortantes e fáceis de entender que apaziguam os trabalhadores em vez de os desafiar, que não têm nada daquele mana indefinível do passado. Desta forma, a homogeneidade da indústria do cinema de Hollywood e dos serviços de streaming de hoje em dia não é apenas calculada para maximizar o lucro – é também o meio pelo qual o sistema capitalista se reproduz a si mesmo. “O entretenimento é o prolongamento do trabalho no capitalismo tardio,” afirmam Horkheimer e Adorno. “É procurado por aqueles que querem escapar ao processo do trabalho mecanizado para que possam lidar com ele outra vez.” Logo, em sociedades dominadas pela indústria da cultura, o cinema representa a reprodução de relações laborais capitalistas através da negação da consciência crítica. “[O cinema] é de facto um escape”, escrevem Horkheimer e Adorno, “mas não, como ele diz ser, um escape a uma realidade má – é um escape ao último pensamento de resistir a essa realidade.”
Pier Paolo Pasolini era, por natureza, uma pessoa que resistia. Era um homem abertamente homossexual em Itália, um país mergulhado no conservadorismo social da Igreja Católica, e enfrentou trinta e três julgamentos discriminatórios durante a sua vida por acusações como blasfémia, obscenidade, e desprezo pela religião. Era um intelectual comunista dedicado num ambiente político onde a violência, particularmente da direita, era comum, e ele era um dos maiores analistas de esquerda da sociedade consumista-capitalista que emergiu no país devido ao “milagre económico” de meados do século XX.
Pasolini era conhecido nacional e internacionalmente pelas suas críticas incisivas à cultura consumista italiana, incluindo a sua crença firme de que o “neo-capitalismo” do pós-guerra se tinha provado mais nocivo ao carácter nacional italiano que a era de Benito Mussolini. Ele acreditava que o método de produção neo-capitalista desvalorizava corpos e mentes humanas mais extensivamente que qualquer outro modo de produção prévio, e que isto se estendia também ao mundo do cinema.
No fim da sua vida, Pasolini estava convencido de que a televisão cada vez mais ubíqua era o engenho original do consumismo do pós-guerra. A televisão era tão nociva para ele porque se infiltrava na vida doméstica. Podia estar ligada a todas as horas do dia. E acabaria por, afirmava ele, gradualmente aclimatar o povo italiano a uma existência fragmentada e puramente consumista na qual todo o ímpeto por acções comunais era suplantado pela saciação doméstica de desejos basais.
As primeiras obras de Pasolini abordam sobretudo o “sub-proletariado” de Roma: a população jovem esquecida cuja indigência persistia mesmo enquanto o chamado milagre da Itália pós-guerra trazia uma subida na produção nacional e um aumento drástico da disponibilidade de bens para a população urbana crescente. Enquanto a percentagem de famílias que podiam ter um carro ou uma televisão subia a pique, a pobreza do sub-proletariado continuava inabalável. Alguns intelectuais italianos referem-se ao boom do pós-guerra no qual Pasolini produziu as duas primeiras obras não como o milagre económico, mas como “a era da alienação”, dando ênfase a pobreza contínua e à agravada sensação de estranhamento que resultou da dissolução rural, expansão urbana e trabalho operário exigente, todos factores que alteraram drasticamente os hábitos colectivos da população. O próprio Pasolini acreditava que esta alienação cultural infiltrante – do trabalho, da família, de acções comunais significativas – era o resultado da dizimação de uma sociedade pré-consumista. Junto com outros escritores da sua época, ele argumentava que a arte deve ser empregada com objectivos políticos conscientes – que deve ser transformada numa arma que possa representar de forma exacta a alienação da vida contemporânea e expôr a sua ligação ao modo de produção neo-capitalista.
O seu desgosto pelo capitalismo pós-guerra, contudo, ia para além da alienação social que este gerava. Pasolini sentia que estava a ocorrer um genocídio: o genocídio do “novo fascismo” que estava a destruir os velhos costumes e a substituí- -los por uma hegemonia exploradora e humilhante. Ele via este sistema emergente como mais perigoso que o fascismo do início do século XX, declarando: “Eu considero o consumismo um fascismo pior que o clássico porque o fascismo clerical não transformava os italianos…era totalitário mas não totalizador.” Ele acreditava portanto que a nova cultura consumista e as suas produções artísticas eram uma força alienadora com um poder sem precedentes que seduzia indivíduos materialmente enquanto manipulava os seus corpos e mentes para benefício de um pequeno grupo autoritário. A indústria cultural do pós-guerra, e a televisão em particular, não representavam simplesmente um declínio na qualidade da produção artística em Itália. Através da sua negação da consciência crítica dos espectadores, também eram cúmplices activos de um sistema económico autoritário.
Talvez o pior de tudo era que Pasolini não via uma oposição viável a este “novo fascismo”. Ele causou um famoso escândalo na esquerda italiana com o poema “O PCI para os jovens”, no qual criticava os movimentos estudantis de 1968 por não reconhecerem a polícia como proletários equivocados ou eles próprios como burgueses e abstraídos da ideologia. Foi uma posição paradoxal que provocou muita condenação e debate: essencialmente, ele argumentava que os polícias pertenciam à classe operária mas eram incapazes de solidariedade para lá do seu investimento material numa instituição reaccionária (tal como os sindicatos de polícias existem hoje em dia principalmente para isolar agentes do escrutínio externo em vez de nutrir consciência de classe), enquanto que os estudantes burgueses radicais eram incapazes de implementar mudanças radicais precisamente por causa do seu carácter burguês. Ele também considerava o crescente liberalismo à volta de assuntos relacionados com sexo largamente comprometido. Ele acreditava que ideias supostamente revolucionárias sobre a libertação sexual eram de facto influenciadas pela lógica prevalente do consumismo, e que portanto apoiavam em vez de enfraquecerem as condições socioeconómicas contemporâneas.
Consequentemente, ao olhar de Pasolini, as promessas materiais e psíquicas de bens e da indústria da cultura eram tão sedutoras que facilmente capturavam a sua oposição. A oposição ao novo fascismo não tinha qualquer energia verdadeiramente autêntica e comprometidamente adversarial. Foi isto que ele tentou introduzir no seu trabalho: uma autenticidade sem dívidas às estruturas fílmicas lucrativas que reproduziam a hegemonia neo-capitalista. Para lutar contra a ascensão deste “novo fascismo”, Pasolini quis encontrar maneiras novas e autênticas de representar a crítica Marxista na sua arte, e alcançar o intelecto dos espectadores duma forma que os desafiasse em vez de os apaziguar.
Os filmes de Pasolini pós-boom resistem às dinâmicas do consumo artístico moderno ao desafiar as estruturas ready-made da indústria cultural e criar obras que são, nas suas palavras, “inconsumíveis”. Numa entrevista, ele diz que a sua intenção é “fazer produtos que sejam o mais inconsumíveis possível…Eu sei que há algo de inconsumível na arte, e precisamos de dar ênfase a essa qualidade.” Para este fim, ele quis criar um “cinema poético” que servisse de “instrumento de resistência contra a comodificação da cultura” descrita por Horkheimer e Adorno. A sua técnica artística mais importante neste sentido é a do significado suspenso de Roland Barthes.
Pasolini era um confesso admirador de Barthes. Cita-o directamente no ensaio “O fim do Avant-Garde”, e cita-o na prancha de “Bibliografia Essencial” que dá início a Salò. O termo Barthesiano que Pasolini adopta é sens suspendu, ou significado suspenso. Barthes descreve-o como uma prática teatral de “significantes incertos” e “signos quebrados”, e argumenta que “a arte e originalidade do realizador de cinema está situada nesta zona (de signos quebrados)…Poder-se-ia dizer que o valor estético de um filme é uma função da distância que o auteur sabe introduzir entre a forma do signo e o seu conteúdo sem abandonar o domínio do inteligível.”
Esta técnica não tem o propósito de excluir sentido. Cria, sim, uma sensação de ambiguidade na qual o sentido não é significado directamente e está portanto suspenso, recusando-se a dar ao espectador símbolos facilmente digeríveis. O significado suspenso deve ser entendido como uma oposição aos processos e fórmulas manipuladoras da produção cultural moderna tal como exemplificada pela indústria do cinema do tempo de Pasolini, e pelas tecnocracias multinacionais do streaming de hoje em dia. Em vez de produzir arte com a intenção de manipular consumidores através de padrões emocionais previsíveis e símbolos fáceis de compreender, o significado suspenso desafia a digestibilidade fácil introduzindo elementos deliberadamente indigeríveis na obra. Ao adoptar esta táctica, Pasolini cria uma semiologia do cinema que tenta reintroduzir o aspecto “inconsumível” da arte – o seu mana – na indústria cultural e acordar os espectadores para as estruturas totalizadoras e convenções nas quais estão imersos.
Esta estratégia está presente em vários dos seus filmes mais tardios, particularmente Teorema (1968), Pocilga (1969), e Salò, ou os 120 dias de Sodoma (1975). A série que separa os dois últimos filmes – a Trilogia da Vida, que consiste de O Decameron (1971), Os Contos de Canterbury (1972) e As Mil e Uma Noites (1974) – é menos relevante, porque se preocupa mais com celebrações do corpo do que com a sua degradação. Adicionalmente, Pasolini famosamente deserdou a trilogia antes de começar Salò, um filme que explora mais profundamente o vazio burguês, o sadismo aristocrático, e a violência do consumismo, temas que havia previamente investigado em Teorema e Pocilga. Estes três filmes, quando analisados como um tríptico, fornecem ideias importantes sobre a visão de Pasolini do neo-capitalismo e da indústria cultural do pós-guerra, e também sobre as suas tácticas artísticas para minar a sua hegemonia.
Os conceitos da indústria cultural e do significado suspenso são integrais aos objectivos artísticos de Pasolini em Teorema, um filme que retrata o colapso de uma família burguesa devido à chegada de um convidado misterioso. Pasolini afirmou que “um jovem, talvez Deus, talvez o Diabo, ou por outras palavras, a autenticidade, chega a esta família e todos os personagens estão em crise. A demonstração não é resolvida.” A demonstração a que Pasolini se refere é a sedução de todos os membros da família pelo convidado, que depois se vai embora, desencadeando um colapso mental em cada um deles. A natureza sexual dos encontros não deverá levar ninguém a pensar que as suas crises são puramente sexuais. O seu colapso é mais holístico que isso. A família no início vive numa posição socioeconómica agradável na qual domina uma hierarquia racional, e no fim foram seduzidos pela “autenticidade” que o racionalismo burguês procura suprimir, tal como os mecanismos da indústria cultural tentam destruir a qualidade de mana da arte forçando a transformação de todos os produtos criativos em estruturas reproduzíveis. O facto do colapso colectivo desta família ser deixado por resolver na conclusão aponta para o uso do significado suspenso Barthesiano por Pasolini, e as maneiras através das quais ele o usa para fortalecer o seu argumento a favor do poder transformador da “autenticidade”.
O papel do convidado não é oferecer uma solução para os problemas da família; ele é a personificação da autenticidade indigerível, e o seu propósito é precipitar o fracasso do corpo social burguês. Por outras palavras, o significado simbólico do seu colapso está suspenso, e apesar dos efeitos serem mostrados, nunca são unificados numa só mensagem relativa à re-educação da burguesia. Pasolini não direcciona os personagens ou espectadores para um novo sistema de crenças. Esta ambiguidade aponta para o seu desejo de reformular as convenções narrativas da indústria do cinema italiano pós-guerra, que para ele resultam sempre na destruição do potencial transformador da arte. Horkheimer e Adorno notam que o propósito dos “esquemas de reprodutibilidade mecânica” da indústria cultural é standardizar o estilo, criando “sulcos bem gastos de associações” que esmagam o mistério das obras em máquinas de racionalidade pouco inspirada. O convidado é portanto uma representação poderosa da autenticidade a que o próprio Pasolini aspira e à qual opõe a racionalidade da família burguesa, e por extensão a racionalidade da indústria cultural.
O conflito entre a racionalidade e a autenticidade surge também em Pocilga, onde Pasolini usa de novo o significado suspenso como estratégia artística central. Este filme retrata a ascensão do capitalismo de monopólios e o fracasso de uma força verdadeiramente autêntica e não comodificada que desafie este processo. O filme tem duas histórias paralelas. Uma delas segue uma família de industrialistas na Alemanha do pós-guerra. Ao longo do filme, o patriarca da família, Klotz, tenta chantagear o seu rival, um industralista chamado Herdhitze, que por sua vez chantageia Klotz para que ele aprove uma fusão usando informação sobre a obsessão sexual do seu filho Julian com porcos. É claro desde o início que a família Klotz habita um ambiente diferente do da família de Teorema: Klotz é da aristocracia industrial, e a sua posição socioeconómica não é abalada pela indiferença do seu filho perante temas de negócios ou a namorada de Julian, Ida, que participa no movimento radical estudantil de 1968. Como foi referido, Pasolini já tinha tornado claras as suas opiniões negativas acerca dos movimentos estudantis e da libertação sexual quando fez Pocilga. Ida, o símbolo do radicalismo estudantil, está politicamente falida, e a representação mais proeminente da libertação sexual é Julian, cujo único desejo é ter sexo com porcos, o símbolo do filme do consumo descontrolado. Pasolini retrata o vazio do radicalismo estudantil e da comodificação da libertação sexual para comunicar o desespero da situação como ele a via: os poderosos destruiram a autenticidade através da produção racional, enquanto que os jovens são incapazes de se libertar dos padrões de consumo da indústria cultural.
Esta análise, porém, está limitada à família Klotz. A segunda história, paralela a esta, é a do vagabundo do deserto – e quando emparelhada com a história de Julian e da sua família, permite ao significado suspenso de Pasolini abrir novos caminhos de análise intelectual. A inclusão do vagabundo em Pocilga é um exercício de significado suspenso Barthesiano que coloca duas histórias de consumo não relacionadas lado a lado e permite aos espectadores fazer as suas próprias conexões. A história retrata um homem sem nome a atravessar um deserto vulcânico, consumindo quase tudo o que encontra – plantas, borboletas, humanos – até ser capturado e executado. As suas últimas palavras são: “Matei o meu pai, comi carne humana e tremo de alegria.” O vagabundo está claramente alinhado com Julian, outra figura do consumo hedonista, mas a natureza literal do seu consumo também se relaciona com o discurso sobre a produção industrial que permeia o filme. Excremento é usado várias vezes para denotar indústria: “A Alemanha”, diz Klotz quando fala com Herdhitze, “que capacidade de digestão…que capacidade de defecação.” Tal como o vagabundo canibal, a sociedade consumista absorve seres humanos e defeca os seus corpos como produtos para outros consumirem. Não interessa a Pasolini o quão consciente um indivíduo está da sua cumplicidade, se “treme de alegria” ou se se considera um radical: são todos igualmente culpados de se encherem com o excremento explorador do neo-capitalismo, e a junção das duas histórias permite aos espectadores traçar esta ligação. A mais famosa condenação de Pasolini da cultura consumista-capitalista, no entanto, viria seis anos depois com Salò, no qual ele demonstra brutalmente as formas através das quais o consumismo viola os corpos e mentes humanos para satisfazer a sua própria ganância.
Salò é a acusação final e inflexível de Pasolini da cultura consumista-capitalista que ele procurou expôr ao longo da sua carreira. O filme retrata quatro aristocratas fascistas na Itália de 1945 que, enquanto o seu governo colapsa à volta deles, se retiram para uma mansão no campo e sujeitam um grupo de jovens homens e mulheres a tortura brutal e muitas vezes sexual. A violência sexual do filme é metafórica; como Pasolini disse, “Em [Salò]…o sexo não é nada para além de uma alegoria da comodificação dos corpos nas mãos do poder. Penso que o consumismo manipula e viola os corpos tanto como o Nazismo o fez.” A sua decisão de representar esta comodificação da forma mais horrível possível relembra os escritos de Adorno sobre a representação do fascismo “clássico”. Adorno criticava sátiras de ditadores fascistas porque “o verdadeiro horror é esconjurado; [o fascismo] já não é o produto a longo prazo da concentração do poder social, mas sim um mero acaso, como um acidente.”
A violência de Salò serve para comunicar a completa antipatia de Pasolini para com os efeitos físicos e mentais de uma indústria cultural cada vez mais monolítica, e o “produto a longo prazo” da sua standardização do estilo. É um filme de profundo desânimo. Não há qualquer sugestão de uma autenticidade política ou artística transformadora, e a única vez que um personagem levanta o braço em oposição, é imediatamente abatido. A estrutura do filme dá ênfase a isto. Como escreve Thomas Peterson, está “organizado de forma atomizada e fragmentada [e] uma série contínua de ultrajes à natureza reprime a união e a coerência mental.”
Na sua representação da violência fascista, Pasolini recusa portanto seguir os “sulcos bem gastos” da estrutura da indústria cultural: a própria crueldade parece guiar o filme. O seu foco ininterrupto nesta tortura serve para nos comunicar o “produto final” de “uma sociedade hiper-consumista que reifica todos os seres humanos como mercadoria nos seus próprios corpos.” É uma sociedade governada pelas estruturas e convenções da indústria cultural, um mundo no qual ideias, produtos e pessoas são vistos pelo sujeito capitalista como, nas palavras de George Lukács, “coisas que ele pode possuir ou dispôr.” É através desta ênfase no consumismo desenfreado e impiedoso que Pasolini liga o conteúdo do seu filme à Itália contemporânea, utilizando o significado suspenso de Barthes para fazer os espectadores chegar a esta conclusão.
A dimensão Barthesiana de Salò depende da transposição do cenário histórico do filme para o presente. Em múltiplos momentos, Pasolini deliberadamente subverte a verosimilhança histórica do filme ao ter personagens que citam textos não-contemporâneos, e inclui até uma cena longa na qual as contadoras de histórias representam uma cena do filme de 1974 Femmes femmes. Como com a justaposição de Pocilga da família Klotz com o vagabundo canibal, Salò apresenta várias semelhanças entre o cenário declarado do filme e a sociedade italiana de 1975, mas nunca elucida completamente essa relação. Os aristocratas fascistas que forçam os seus prisioneiros a comer fezes lembram a comparação de Klotz entre as produções industriais pós-guerra e o excremento: o espectador moderno, como os prisioneiros do tempo da 2ª Guerra Mundial do filme, estão presos numa indústria cultural cada vez mais monopolista que extrai valor aos seus cidadãos “defecando” produtos sem qualquer qualidade edificante e forçando os espectadores a consumi-los para o benefício da indústria. Esta sobreposição temporal resulta numa desfamiliarização do cenário e junta o filme ao presente, oxalá fazendo os espectadores ponderar a natureza humilhante da indústria cultural em relação à violência da Itália fascista e formar então uma consciência crítica sobre os produtos culturais degradantes da Itália neo-capitalista.
Pasolini viu a transformação pós-guerra da sociedade italiana como uma continuação, não um triunfo sobre o fascismo do início do século vinte – e, de forma mais preocupante, ele não viu os seus compatriotas a resistir à privatização das suas vidas. Adicionalmente, o advento da indústria cultural transformou o cinema numa extensão dos processos friamente racionais que governavam esta economia monopolista. Pasolini empregou os seus talentos artísticos na luta contra esta standardização do estilo e usou técnicas como o sens suspendu de Barthes para criar filmes “inconsumíveis” que encorajassem os seus espectadores a aprofundar a interacção intelectual com as suas obras. Ao refinar o seu estilo de inconsumibilidade fílmica, ele procurou expandir a consciência do seu público em relação aos efeitos adversos do mundo dominado pelo neo-capitalismo – um mundo no qual é dado mais valor à racionalidade que à autenticidade indefinível, e a maximização do lucro levou a uma standardização do estilo na arte popular à larga escala. Não seria demasiado pessimista ver as produções fílmicas tecnocráticas da Netflix, Disney e outros como a encarnação moderna do medo de Pasolini de uma arte totalmente desprovida de autenticidade, e portanto uma arte completamente capturada pelo capitalismo contemporâneo. As suas tentativas de inserir uma arte inconsumível nos seus filmes pós-boom foi um projecto político consciente, mas a manipulação sórdida dos corpos e das mentes cujo horror ele tentou representar está agora a decorrer a uma escala muito maior. Através de processos de produção cada vez mais automatizados, estas companhias procuram subjugar os últimos vestígios de estilo individual na indústria do cinema às suas metas. Estão neste momento a pôr em prática os horrores de Salò por todo o globo. O primeiro passo da esquerda para reparar os danos é simplesmente parar de assistir, ou, pelo menos, assistir de forma crítica.