por Pedro Melo Biscaia*
fotografia por David Fadul
Como manda o protocolo, começo por agradecer, penhoradamente, ao autor destas crónicas, Olegário Bettencourt, lídimo representante da arte de observar, refletir e dar vida a certas e determinadas palavras, que alguns dizem guardar no limbo temeroso que existe mesmo por baixo da língua, mas sem que, alguma vez, obtenham a alforria do verbo. – Era isso mesmo! tal e qual eu tinha pensado! eu não diria melhor!… mas, meu caro, a virtude da conveniência social impede-me de o proferir! Estas são expressões talvez demasiado comuns, de que Olegário, subtilmente zombou e, com a sua escrita fina e desassombrada, veio pôr o dedo indicador sobre a nossa ferida coletiva. Todavia Olegário, no fundo, – acreditem – é um ser amargurado, com um grande amor incompreendido e não correspondido pela terra que adotou como sua. Nas suas crónicas, que o diretor do jornal “Linha do Oeste” acolheu – presumivelmente depois de ponderada hesitação – não perpassam sentimentos menores de inveja, de mera maledicência, prosápia ou de desesperança. O leitor mais apressado poderá, talvez, correr o risco de interpretar a crítica olegarística, como uma generalização abusiva do figueirense típico, uma tremenda tapona nos nossos costumes medianos ou o desmerecimento de tantas coisas lindas e boas aludidas por alguns poetas ou cantadas pelas vozes canoras de Maria Clara ou Alice Amaro. Mas se tivermos a paciência de reler, devagar, a sua esmerada escrita, descobriremos essa dimensão sentimental dos românticos, quase de suspiros de alma apaixonada, por detrás do aparente azedume. Por tudo isso e, por certo, por muito mais que cada um poderá intuir, Olegário é um cidadão atento que, por detrás dos óculos pequeninos, tem um amplo olhar de águia (no caso, será melhor dizer de gaivota…), que increpa a realidade conhecida, mas pouco entendida pelos demais. Ele é o Sancho que nos adverte para os nossos devaneios de cavaleiros da triste figura, montados na sela gasta do nosso esquálido Rocinante. Leiam-no, na doçura de um pôr do sol da marginal, sentados no carro com um saco de freiras no colo, e lá verão essa ambivalência de tristeza e de desafio, que verte das suas palavras. Não pretendo ser arrogante neste conselho, mas isto que vos digo, vem do sopro da minha alma feita de maresia e nortada, que aqui se abre neste tremido e emocionado desabafo.
As crónicas de Olegário Bettencourt no semanário “Linha do Oeste”, nos anos 90 do século passado, têm uma aguda pertinência, perante a anomia cívica figueirense que nos tolhe os gestos, emudece a língua e, um dia destes (espero que não) nos oblitere o pensamento. Noutros tempos, com outros contextos e, indiscutivelmente com menor qualidade de escrita, a imprensa local acolhia a crítica como um exercício de intervenção cívica. Alguns se lembrarão da coluna “Os Engenheiros de Obras Feitas” no Figueirense, das secções “Bocas do canto” ou do “Puré de Maçã” no semanário Barca Nova, que escrutinavam a vida pública da cidade e ousavam discordar de algumas decisões e de quem as tomava. Tal como no âmbito nacional, mas num patamar incomparável, as célebres redações da Guidinha, saídas da mão incógnita de Sttau Monteiro, no suplemento A Mosca do Diário de Lisboa ou, ainda em tempos mais recuados, os bonecos e textos de Bordalo Pinheiro na Paródia, as temíveis Farpas de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, os retratos sociais nas personagens de Viagens da Minha Terra, de Garrett até à sempre fresca ironia Vicentina. Todos, no seu tempo e à sua maneira, agitaram a dormência cívica dos seus concidadãos. Todos, na sua diferente medida, se filiam na mesma bitola mordaz e corajosa de Olegário, que disse o que era preciso ser dito. Também na história da nossa urbe, a participação ativa e crítica dos figueirenses, já foi um traço de permanência. Lembremo-nos, por exemplo, da concorrida Representação que, em 1900, recolheu centenas de subscritores que se insurgiam contra a alienação da rua da Alegria (hoje Esplanada Silva Guimarães) anunciada pela Câmara. E foi tal a agitação, que lograram travar a terrível pretensão de destruir aquela varanda sobre o mar. Ou a luta local contra a expansão da fábrica de cimento do Cabo Mondego, nos anos 60, que gerou amplos debates e posicionamentos na imprensa local, neste caso, com a decidida intervenção do então presidente da Câmara, Coelho Jordão, que mobilizou vontades, recursos e combate nos tribunais, para contestar o que Champalimaud desejava. Bem diferente, digo eu, do silêncio quase total, quando se assiste à entrega recente do Pavilhão de Turismo (vulgo Abrigo da Montanha), obra do Arquiteto Raúl Lino, de 1922, para um uso diverso da sua vocação, o qual sempre foi o usufruto público do panorama da Serra sobre o mar, como sonhou, entre outros, Manoel Alberto Rey.
Os entendidos em Botânica, explicam-nos que o figo não é um fruto da figueira (como muitos de nós supomos), mas sim uma infrutescência, ou seja, uma flor invertida que, para se reproduzir, precisa de um inseto alado (daqueles que esvoaçam daqui para ali e vive versa) que seja atraído para o seu interior, onde deposita os ovos e depois, aprisionado, aí fenece. Quando aqueles eclodem, as pequenas larvas alimentam-se da matéria doce do próprio figo que apodrece e que, com resignada lassidão, liberta os novos insetos para cumprirem o desígnio da mediação polinizadora. Atentem bem: a figueira atrai uma criatura externa no desejo que a espécie sobreviva, mesmo que isso determine a sua lenta decadência e a inditosa morte do intruso. Intrigante e trágica esta metáfora que a fitologia nos suscita… – Eis como são insondáveis os mistérios da Natureza!
O imperioso sobressalto cívico implícito nas crónicas de Olegário continua, como se vê, com grande atualidade, nesta terra que queremos continuar a chamar nossa, como uma casa comum, com referências partilhadas de espaço e lugar. Todavia, o desinteresse, o abstencionismo, a crítica populista, a anestesia feérica, a demissão de responsabilidades na intervenção comunitária, são os fatores de risco de uma sociedade controlável e manipulável, sem caráter nem afirmação de valores identitários de coesão. Numa palavra, apodrece! …
Como disse, em 2000, o saudoso Jorge Sampaio, o “investimento na cultura cívica e na formação de uma opinião pública crítica e informada, é vital para o desenvolvimento social”. Esse será, também, na singeleza da minha opinião, o contributo inestimável de Olegário Bettencourt.
Depois deste relambório, talvez excessivo, cumpre saudar, felicitar, abraçar e agradecer ao cidadão, ao amigo e ao escritor António Tavares, por nos ter apresentado esta fantástica personagem que interpela a nossa essência, com a minúcia e criatividade literárias que todos lhe reconhecem. É um autêntico serviço público que, também deste modo, ele presta à cidade.
Eis!
Texto redigido e lido pelo autor, a 19 de março 2025 no Auditório Madalena Perdigão, na apresentação e lançamento do livro de crónicas de Olegário Bettencourt (António Tavares).
*Figueirense ausente, mas sempre com interesse e esperança numa terra progressiva, serena, promotora da cidadania e ancorada na liberdade.