150 anos do Zé Povinho

por Fernando Campos

O Zé Povinho faz este ano, por estes dias, 150 anos.

Nasceu do génio e do lápis litográfico de Rafael Bordalo Pinheiro no dia 12 de Junho de 1875, nas páginas de “A Lanterna Mágica”, a publicação crítico-satírica que Bordalo dirigiu com Guilherme de Azevedo e Guerra Junqueiro.

Nasceu “esperto e matreiro, sem moral nenhuma; se pudesse trepava para as costas dos que o cavalam a ele. Não gosta de trabalhar (tem cólicas às segundas-feiras) e prefere resignar-se do que combater. O manguito é o seu gesto filosófico perante os desacertos do mundo”.

O Zé Povinho olha para um lado e para o outro e… fica como sempre… na mesma”, disse dele o seu autor.

E assim continua, passados que são 150 anos. Na mesma. Não ata nem desata; não envelhece nem se desfigura; está cada vez mais igual a si próprio. Como referiu Ramalho Ortigão, na legenda do seu retrato no Álbum de Glórias, Um dia virá talvez em que ele mude de figura e mude também de nome para, em vez de se chamar Zé Povinho, se chamar simplesmente Povo. Mas muitos impostos novos, novos empréstimos, novos tratados e novos discursos correrão na ampulheta constitucional do tempo antes que chegue esse dia tempestuoso”.

Mas como amanhã não será ainda a véspera desse dia, o que nasceu como caricatura grotesca e pouco lisonjeira cristalizou, sem mudar de figura, num ícone naturalizado pela posteridade. E o Museu Rafael Bordalo Pinheiro de Lisboa está a preparar uma exposição, que inaugurará este ano, onde figurarão não só os Zé Povinhos de Bordalo, mas todos os outros Zés que se seguiram – desde o Zé “Queres Fiado, Toma!” de todas as tascas, aos Zés de muitos outros cartunistas e autores; e até está a pedir a quem possua desenhos ou outras representações pouco comuns do Zé que lhas faça chegar.

E, no entanto, de entre todas as criações magistrais do grande Bordalo, o Zé Povinho seria decerto aquela que o próprio autor não se importaria nadinha que tivesse ficado mais datada, mais circunscrita ao seu tempo e circunstância, mais ultrapassada pela voragem da história e pela natural evolução das consciências.

A Passarola junta-se, como é óbvio, às comemorações deste  aniversário, mas celebra sobretudo o génio do seu criador: o único artista conhecido que enquanto desenhava sem dó nem piedade todos os políticos e potentados do seu tempo em todas as posições risíveis imaginárias também fez – do mesmo modo inflexível, corajoso e desassombrado – um retrato tão fiel e bem-acabado do seu próprio povo que continua, passados 150 anos, tão estranha e definitivamente igual a si mesmo que o próprio não só ainda se revê nele – no mesmo transe hipnótico de espertice apatetada que é a sua atitude filosófica perante os desacertos do mundo – como o reivindica alegremente com entranhada e visceral identificação.

O retrato do Zé é, naturalmente, da autoria de Rafael Bordalo Pinheiro e é o  nº32 do seu “Álbum de Glórias”, publicado em Setembro de 1882.
O retrato do grande Bordalo é um desenho de Fernando Campos.