por Fernando Campos
Conheci fugazmente, nas mesas do café Nau (por volta de 1985) o poeta Joaquim Namorado, que viria a falecer um ano mais tarde. A impressão que dele me ficou foi a de um homem duro, de temperamento ríspido e carácter inflexível, explicados talvez por uma vida cheia de perseguições, por uma fortíssima convicção comunista e obviamente por uma sólida formação em ciências matemáticas. As suas impressões eram exactas, precisas – matemáticas. Achava que 2+2 são 4, na eira ou no nabal, aqui e nos mares do sul; sobre estes chegou mesmo a escrever uma fulgurante e certeira elegia de um só verso: “Eu não fui lá…”.
Trata-se de um poeta cuja relevância intelectual e estética (dirigiu durante anos a revista Vértice e foi ele que cunhou uma das correntes literárias dominantes no século vinte português) é tão iniludível como o seu testemunho de cidadania. Autor da “incomodidade”e de “Aviso à navegação”, empenhado politicamente (até à militância), também foi capaz da contenção, da ironia profunda, da invenção e do arrojo formal de “Viagem ao país dos nefelibatas”. Em 2014, ano do seu centenário, os Correios de Portugal dedicaram-lhe um selo integrado numa nova série dedicada a “vultos da história e da cultura”. No mesmo ano, a Biblioteca Municipal da Figueira da Foz perdeu o espólio que o poeta lhe havia oferecido porque os familiares se fartaram de ver o nome e o legado deste continuamente enxovalhados pela Câmara Municipal.
Era um poeta que não cultivava a estética de plástico e um cidadão que não contemporizava com a ética de elástico; abominava o lirismo canalha e o sacanismo pragmático; desprezava os frouxos, os velhacos e os videirinhos – tudo qualidades que, infelizmente, é frequente encontrar na mesma pessoa. Era um chato cuja atitude sobressaltava a mediocridade dos instaladinhos na vida e ainda lhes desperta um rancor vingativo implacável.
Hoje, na Biblioteca Pública Municipal da cidade que chegou a ter um prémio literário com o seu nome, que o inenarrável Santana Lopes “descontinuou” – a mesma cidade onde o poeta se fixou, fundou um jornal, foi eleito à assembleia municipal e residiu até à morte – é impossível achar uma única referência ou obra disponível do autor de A virgem metafísica, que diz assim: tinha os olhos tortos como um sofisma / morreu engasgada com dois raciocínios seguidos.
Mas o rancor dos frouxos, dos velhacos e dos videirinhos é implacável; e na Figueira da Foz o enxovalho da decência, mais do que um desporto, é cultura municipal. Em 2025, a 12 de Junho, a Câmara Municipal, na pessoa do seu presidente, o inacreditável Santana Lopes, decidiu “homenageá-lo” com uma rotunda com o seu nome. O local foi escolhido cirúrgica e estrategicamente: fica no fim (ou no príncípio) da Avenida Mário Soares, entre um supermercado e uma igreja evangélica. Exactamente.
Mas ainda há mais, que o enxovalho total não se concretiza realmente sem o cinismo malévolo e retorcido, ou um lampejo refinado de estupidez natural, de um acto de contrição em dois raciocínios seguidos: segundo o jornal “Campeão das províncias”, “Durante a cerimónia, o presidente da autarquia figueirense, Pedro Santana Lopes, recordou o antigo Prémio do Conto Joaquim Namorado, criado em 1983 por iniciativa do jornal Barca Nova e promovido pela Câmara Municipal. O concurso, entretanto descontinuado, foi substituído durante um dos mandatos anteriores do próprio autarca. «Foi uma reacção inadequada, reconheço hoje. Deveria ter continuado com o nome de Joaquim Namorado», admitiu Santana Lopes, classificando a atribuição do nome à rotunda como «um acto de justiça, embora tardio»”.
Pobre Joaquim Namorado, como diria Frank Zappa, “the torture never stops”.
O retrato do poeta foi editado a 31 de Março de 2014, no blogue ”osítiodosdesenhos”. No mesmo ano foi capa do livro “Joaquim Namorado – Herói do neo-realismo mágico”, de Jaime Alberto de Couto Ferreira, pela editora Lápis de Memórias.