Quem já foi ao Quartel da Imagem terá visto uma exposição dedicada a Manuel Santos, “Um fotógrafo amador”. Nascido na Figueira em 1893, foi um grande promotor do turismo através da fotografia e do cinema. A 22 de Janeiro de 1930 estreou, numa sessão no Casino Peninsular, o seu documentário “Figueira da Foz, Rainha das Praias Portuguesas”, que divulgamos hoje graças à sua digitalização pela Cinemateca Portuguesa, que disponibiliza o filme completo aqui (para ver o vídeo, confirmar se a barra de endereço diz “http” e não “https”).
Mas a Figueira não tem só história de cinema, tem também história de crítica de cinema. Em 1930 estava activa a publicação figueirense Jornal de Cinema, que se gabava no cabeçalho de ter “a maior tiragem dos jornais portuguezes da especialidade”. Com muito afã para promover um documentário sobre a sua terra, “realisado para apregoar por toda a parte, com voz altisonante e límpida, as maravilhas naturais da terra que nos serviu de berço”, fizeram um panfleto sobre o filme que distribuíram gratuitamente no Parque Cine. Se alguma coisa se pode dizer sobre estes cinéfilos e críticos, é que eram honestos, e incluíram alguns comentários ligeiramente negativos. Talvez por esta honestidade, o Jornal tinha, ou pelo menos na sua 6ª edição dizia ter, inimigos que “não olham a meios. Tudo lhes serve. Procuram afanosamente cair sobre nós e reduzir-nos a pó, cinza e nada… E como viram que nada conseguem de cara a cara, vá de tentar ferir pelas costas, a horas mortas da noite…” Queixavam-se destes inimigos em várias edições do Jornal, dizendo que tinham por hábito lançar rumores. Desta vez, atacaram o folhetim de promoção do documentário: “como não tinham outra táboa a que se agarrar, trataram imediatamente de espalhar que essa crítica não tinha sido escrita pelos Directores deste Jornal. Foram eles, talvez, os sabichões…”
Quem eram estes inimigos é um mistério que ao que parece nunca chegou a ser resolvido. Seja como for, dois dias depois, o próprio Manuel Santos enviou uma carta a responder aos comentários negativos do Jornal de Cinema, dando justificações para tudo, e com isso deu-nos o melhor acompanhamento que se poderia querer para um filme já com 95 anos: crítica e resposta à crítica.
Seguem então abaixo as transcrições, começando pelo panfleto que, segundo os seus autores, “[mostra] a quantos nos lêem, que JORNAL DE CINEMA, pequenino, sabe também impor-se como os grandes, e trabalha, pela causa que defende, com denodo e desinteresse.”
A Figueira da Foz – cidade moderna, arejada e sádia, importantíssimo centro de turismo, a melhor, a mais bela e a mais concorrida das praias da Peninsula, classificada como Rainha das Praias de Portugal no “certame” publico organisado pelo Jornal “A Tarde” – parecia não existir para os operadores cinematográficos do nosso País, que teem gasto muitos metros de película em assuntos de somenos importancia.
Qualquer cidade, vila ou aldeia, por mais pequena e insignificante que fôsse a sua industria ou comércio, qualquer praia, – Ericeira, Espinho, Cascais, Carcavelos, etc, – tinha um documentário a correr pelas nossas telas.
Só a Figueira vivia no esquecimento!…
Só a Figueira, A Rainha das Praias Portuguesas, não tinha as suas incomparaveis belezas, registas numa pelicula que, passando pelos Cinemas, não só nacionais como estrangeiros, mostrasse o que ela é de facto.
Foi preciso que o Sr. Manuel Santos, figueirense Amigo da sua terra, viesse do Brasil disposto a fazer o que de há muito devia estar feito.
E a sua competência, aliada á grande vontade, conseguiu tornar em realidade, o que á maioria dos figueirenses se afigurava de impossível.
O seu film, ontem apresentado no Peninsular em sessão particular, a que assistiram sómente os representantes da Imprensa e alguns convidados, é prova evidente do seu saber.
Para o Sr. Manuel Santos vão os nossos parabéns pela sua obra, e sinceros agradecimentos pelo convite que nos enviou para assistirmos à exibição.
O que é o Film:
O Film é iniciado com a apresentação dum gráfico Peninsular, apontando a Figueira e os mais importantes centros do País visinho, que costumam dar grande número de frequentadores à nossa Praia.
Logo em seguida, e como primeiro quadro vivo, é-nos mostrada a Avenida Saraiva de Carvalho, vista a todo o seu comprimento. Passa depois deante dos nossos olhos a Praça 8 de Maio, dominada pelo monumento venerando que representa a figura do grande figueirense Manuel Fernandes Tomaz.
E, precedidos de rápidas legendas, alguns aspectos do Cais e Trechos da Doca á hora da faina marítima, e o Monumento aos Mortos da Grande Guerra.
As Festas de S. João, que o ano passado decorreram com desusado brilhantismo, não ficaram alheias ao film. As Cavalhadas, em que tomaram parte carros alegóricos do Ginásio, da Associação Comercial, da Beira Alta, etc., a Benção do mar e do povo, pelo senhor Bispo Coadjuctor, o desfile da procissão através da Rua Cândido dos Reis, possuem no film quadros de valor que bem atestam o domínio da objectiva e o bom gosto do feliz amador.
O ponto mais sensível, o primordial motivo do documentário passa agora, para nossa admiração: A Praia á hora do banho.
Não obstante a pouca concorrência que se nota (pois a Figueira teve dias mais animados), os aspectos filmados são de molde a agradar plenamente. A Praia que a retina da objectiva colheu desde a enseada de Buarcos até ao Forte de St.ª Catarina, seu términus, é-nos mostrada em toda a sua magestade! O que ficou feito é suficiente para atestar, em qualquer parte, a nossa superioridade sôbre todas as estâncias de turismo. Não faltam os “maillots” provocantes de Biarritz, o abandono de si próprio, na embriaguez do prazer e da distracção, da nossa Costa do Sol, nem mesmo os risos alegres e encantadores das sedutoras filhas de Espanha, ou os galanteios, que as ondas levam, dos nossos rapazes “Chics.”
Plásticas Castelhanas, Um Bando de Gentis Figueirenses, Os Mariscos são Bom Aperitivo, As Lagoas das Creanças, são razão suficiente para sustentarmos a nossa afirmativa.
Ondas bemfazejas, um pouco prejudicado pelo embravecimendo de mar. Coitado! fôra a primeira pessoa que ousara colher os seus encantos!… E por isso, modesto na sua dignidade, conquistada á força de tantos anos de abandono, não temeu levantar-se para repelir a afronta que julgára receber!… Mas, se aqui quiz destruir os desejos do captor dos seus encantos, um pouco mais adeante, envergonhado da sua altivez, e onde o pôr do Sol desenha a silhueta dos rochedos, e o azul das suas águas se transforma na alvura lactea das escúmas, soube dar-lhe ensejo para aformosear o seu melhor quadro.
Ondas só para vista é sem dúvida o ponto culminante que tão tem guinda o artista-amador à altura dos nossos melhores operadores. O quadro tem côr e está magnificamente filmado. É de longe o melhor bocadinho do “film”.
No Tennis Club, a “Ginkana” Infantil tem as scenas mais interessantes.
A bela tarde de João Nuncio, com grande concorrência de portugueses e espanhois, foi motivo para uma das boas passagens do documentário.
A “Ginkana” de Automóveis no Campo da Mata, com tôdas as suas peripécias, é agradável de ver.
É pena que as scenas filmadas no Hipodromo fôssem um pouco prejudicadas pela má actuação dos cavaleiros concorrentes!
Entra-se no último capítulo do film:
A Caminho da Serra da Boa Viagem. Soberbamente manivelada a máquina vai colhendo aspectos encantadores.
Muito felizes as fotografias que mostram o Farol Novo do Cabo Mondego, e a Bandeira, de onde a vista se espraia até se confundir na imensidão do horizonte!
E é lá do alto que a Figueira, por entre a paisagem verdejante da Serra, se mostra então, muito pequenina, muito formosa, como uma rosa num cêsto de viçosas flores!…
O film termina com essa vista magestosa sómente perturbada por uma creança que vem animar um quadro morto…
Considerações:
O film, evidentemente, está incompleto.
Faltam-lhe alguns quadros, que uma vez filmados, lhe dariam mais animação e valor.
Por exemplo: o Casino Peninsular aparece de fugida, na Saída duma “Matinnée” no Casino.
É realmente de estranhar que não fôssem focadas algumas scenas nos interiores do edificio, durante as várias “Festas” que ali se realizaram.
As regatas da época passada, pelo brilhantismo com que decorreram e pelo elevado número de concorrentes e espectadores, mereciam também uns metros de pelicula.
O Jardim Municipal de que tanto nos orgulhamos, e que tão frequentado é nas quentes tardes dos dias de verão, especialmente á hora dos concertos musicais, tambem não ficaria mal no documentário da Figueira.
Foi pena que tivesse esquecido! É bem verdade que nem tudo pode lembrar…
Depois deste panfleto ter sido difundido, o realizador Manuel Santos enviou ao Jornal este “esclarecimento”, que foi publicado na edição seguinte:
Figueira da Foz, 24 de Janeiro de 1930
Senhores Redactores do “Jornal de Cinema”
As minhas melhores saudações.
Cumpre-me agradecer a edição especial do Jornal de Cinema, dedicada ao meu “film”, Figueira da Foz, Rainha das Praias Portuguesas, as sensibilizadoras palavras empregadas na sua critica, que revela apreciavel conhecimento de causa e os imerecidos louvores com que VV quizeram distinguir-me.
Permitam-me agora VV. esclarecer as considerações finaes da vossa supra citada edição especial.
– As animadas “Festas” que em diversas noites se realizaram no Casino Peninsular, mereciam figurar no documentário e merecêram também todo o meu desêjo nesse sentido, o que comuniquei a alguns directores daquela importante casa de diversões.
– Mas, isso importaria numa instalação de condutores eléctricos com capacidade apropriada á intensidade de corrente para iluminar um conjunto de projectores voltaicos, que não existiam, nem soubémos se existiria a amperagem que se requer para tal fim.
– Seria quasi transformar o Casino em “Studio”.
– Ainda não procurei resolver o caso com o emprêgo de archotes de magnésio, mas alguém dissuadiu-me disso por causa da irregularidade do poder iluminante do magnésio, do que resultaria uma fotografia bruxoleante; mais um aspecto de caverna incendiada do que um sumptuoso salão de baile.
Quanto ás “Festas diurnas que também se efectuaram no Casino, dentre as quaes foram bem interessantes as “toiradas” infantis, o actinometro mostrou me que não existia luz suficiente para permitir cinematografias á velocidade normal; poderia têr filmado algumas scenas a dois terços ou a meia velocidade, mas o seu aspecto no “écran” seria grotesco, pelo deslocamento brusco e còmico dos figurantes.
– Preferi portanto não o fazer.
– A ausencia no meu “film” das ultimas grandes regatas que tanto honraram o vasto estuário do Mondego, constitue para mim grande desgosto: não foi possível registá-las porque me encontrava ausente da Figueira nessa ocasião.
– As cinematografias no Jardim Municipal oferecem certas dificuldades de ordem tecnica e artistica, e para se mostrar condignamente no “écran” as belezas do melhor jardim da Figueira, exigir-se-hia: ou uma optica especial de grande angulo, raramente usada em cinematografia pela concernente escassez de luminosidade, com a agravante da luz já débil da hora em que costumam têr lugar os concertos naquele jardim, ou então um recúo de que lá não se pode dispor para a obtenção de um conjunto satisfatório.
Creio ter ilucidado as considerações da vossa Edição Especial, que muito me penhora, e apresento a VV. os protestos da minha consideração e elevado apreço.
De VV. etc.
Manuel Santos
E tendo todas as partes envolvidas dito de sua justiça, só nos resta a nós dizer: bom filme.