Mário Bertô: “Não, não me pagam – que eu não quero”

por Fernando Campos

Vida e causas de um amador apaixonado

Está no pensamento como ideia;
e o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.”
Luís de Camões, Transforma-se o amador na cousa amada

Parece um velho marinheiro – mas não dos que perdeu as graças do mar. O vento que o desassossega é o nosso tempo; o mar que o desinquieta é o mundo em que vivemos. Ele continua atento às marés. Eu vim ao mundo com uma guerra – diz, com ironia inconformada – e não queria ir-me embora com outra – remata, grave e apreensivo.
A Passarola falou com ele. O que se segue não é uma entrevista mas o registo impressivo do depoimento de um homem lúcido que viveu intensamente o seu tempo e participou activamente na história da nossa cidade. Vivir para contarla. A esta vida contada julgamos, porém, adequado acrescentar notas de rodapé – que explicam alguns nomes e factos que não se eximiu de aludir – para edificação dos esquecidos e das novas gerações.

Mário Alberto Ribeiro Ferreira é um cidadão com uma impressionante folha de serviços prestados à comunidade e à cultura. Amador de teatro desde a juventude, no Porto, onde nasceu e se iniciou, com 14 anos, nos Modestos(1), parece ter tido sempre presentes, ao longo da sua vida, os princípios de solidariedade desinteressada da velha e popular troupe portuense. Também frequentou o TEP – Teatro Experimental do Porto onde, sob a direcção de António Pedro(2), “era muito alto e muito severo e exigente”, partilhou o palco com actores como Júlio Cardoso e António Reis, que mais tarde haveriam de fundar a Seiva Troupe. Mário contudo sempre preferiu o registo cómico e o alegre improviso ao tom solene e declamado do teatro dito sério – o riso breve de um chiste fugaz à penosa solenidade de um longo sermão sentencioso. Foi nesse âmbito, quando se apresentava, sempre como amador em colectividades populares, como “o Badaró do Carvalhido”, emulando os números mais conhecidos desse grande comediante brasileiro muito em voga na época, que ganhou o seu nome artístico. Um nome forjado, e oferecido, pelo próprio Badaró, e pelo qual é hoje conhecido por todos: Bertô – Mário Bertô.

O espírito inconformista e a atitude contestatária à ditadura vêm-lhe  do exemplo, da infância – “lembro-me do Dr. Ruy Luís Gomes(3), era cliente do meu pai e lembro-me de ouvir as suas conversas… que me marcaram” – e da juventude, no Porto, onde o reviralho tinha todo um “calendário de actividades” para “confundir” a ditadura. A 5 de Outubro, no 1º de Maio ou a 31 de Janeiro(4), por exemplo; “Neste dia íamos todos (os portuenses do reviralho) para a baixa e sabíamos que íamos “comer”. Porque éramos aos milhares e queríamos colocar a placa com o nome da rua “31 de Janeiro”, que o Salazar tinha feito re-baptizar como Rua de Stº António. A polícia vedava-nos logo o acesso à rua, claro, e vinha logo à cacetada, viravam o cassetete ao contrário e davam com aquela argola metálica, depois vinha o carro da água e era porrada e água pra todos; mas depois, no ano seguinte, a água já era verde, que era para “marcar” a malta e os gajos regavam até quem estava à janela dos prédios. E era muita porrada, a polícia dava em nós e nós na polícia, íamos todos parar ao hospital. Era todos os anos assim. Eu fui três anos seguidos para o hospital.” Mas houve um ano, mais tarde, já namorava e vinha, com a futura esposa e com a sua irmã mais nova, “de uma passagem de modelos na Rua da Fábrica para baixo apanhar o eléctrico para o Carvalhido e, lembro-me como se fosse hoje: no meio daquela confusão, a polícia agarra num sujeito de gabardine que estava escondido no portal do Banco de Portugal, arrasta-o até à praça, sempre debaixo de pancada, e continua a espancá-lo aos pés da estátua. Soubemos mais tarde que acabaram por o matar. Era um sujeito ligado a uns escritórios do vinho do porto. Era assim a “justiça”. Que, plos vistos, há quem queira implantar outra vez em Portugal.”

Radicado desde os anos sessenta do século passado na Figueira da Foz, onde se estabeleceu com 22 anos, recém-casado, com um salão de cabeleireiro, Mário conheceu inúmeras dificuldades, cogitou mesmo desistir e fazer as malas ao fim da primeira temporada – ao invés do que pensam os figueirenses que cultivam o mito do passado radioso, A Figueira, nesse tempo, fechava em Outubro e só abria em Maio, como o Casino” – mas logrou ultrapassá-las e ainda participar activamente na vida associativa e cultural e na efervescente resistência à ditadura, ao lado das figuras tutelares de velhos resistentes como Cristina Torres, Rui Fernandes Martins e Rui Alves. Foi dirigente, seccionista e treinador de futebol no Ginásio Clube Figueirense, actor e animador, sempre amador, em festas de beneficência, e até correspondente do Jornal de Notícias. Foi nesta qualidade que protagonizou, a poucos dias do 25 de Abril, um episódio que pode ter tido importância capital no facto de hoje a Figueira ser dotada de um hospital distrital: fez publicar, na última página do JN, uma reportagem ilustrada com fotos esclarecedoras sobre o estado de degradação do hospital que Bissaya Barreto(5) havia feito edificar na Cova-Gala e se encontrava encerrado havia oito anos. “o velho hospital da Figueira, sem condições absolutamente nenhumas, era um posto de despacho de doentes ou sinistrados para Coimbra. Entretanto, na Gala estava um espaço hospitalar pronto mas encerrado e com vigilante à porta.” Ludibriado este, Mário entrou furtivamente e tirou fotografias do interior. Depois fomos ao Cruz(6) que nos revelou os rolos. A publicação da reportagem causou furor, ao ponto de ter sido apresentada queixa policial por entrada abusiva num espaço privado. Fui salvo pelo 25 de Abril. Após a revolução, (durante a vigência de um dos governos provisórios), fui contactado pelo Dr. Vasco(7) que me pediu os dados da reportagem para os ceder à Ordem dos Médicos em Coimbra e esta ao governo. Depois disso, um grupo de figueirenses, entre os quais destaco o Menano(8), na altura funcionário do hospital, iniciaram um projecto para a abertura desse espaço. Foi moroso mas conseguiu-se e, a partir dai, foram feitas várias alterações e arranjos, pois devido ao tempo que tinha estado fechado, o piso e as próprias canalizações estavam todas degradadas. Quando se iniciou o serviço hospitalar, tivemos a sorte de uma valorosa equipa de médicos de Coimbra e da Figueira avançarem com o trabalho clínico que foi reconhecido por todos. Mas o hospital é uma conquista do Povo da Figueira, TEMOS DE O DEFENDER, agora que  querem desvalorizá-lo de novo, tirando-lhe a cada dia mais valências.” Sem nada que ver mas a propósito, Mário Bertô ainda teve oportunidade, antes de se desvincular do JN (devido às muitas solicitações políticas desses tempos exaltantes e conturbados do pós-revolução) de nele fazer publicar, também na última página, um copioso relato dos preparativos do levantamento militar no Quartel da Figueira, acompanhado de uma “magnífica e meticulosa reportagem fotográfica do Jorge(9). Naquele tempo o JN não era o que é hoje, era um lençol assim”- abre as mãos de par em par – uma página era pano para muitas mangase as notícias eram ditadas por telefone e depois  refundidas pela redacção. Quanto às fotos, eram remetidas, ou os rolos, pela CP, e no Porto eram levantados na estação e revelados no laboratório do jornal. Era assim que se fazia jornalismo”. Depois disso e vendo-se livres das represálias de Bissaya e da acção da polícia política, entretanto desmantelada, decidiram “fazer alguma coisa.– jornalismo em liberdade-Fomos a Mira, onde havia uma “colónia de férias” do Bissaya e descobrimos que a tipografia que existia em Mira pertencia à “Casa do rapaz” do Bissaya e indagando, perguntando a este e àquele,  descobrimos – surpresa – que as máquinas que lá estavam eram as mesmas que tinham sido apreendidas pela PIDE em 1937 à “Voz da Justiça”(10) do Zé Ribeiro(11)”.

Mas foi realmente só após o 25 de Abril que Mário Bertô se dedicou ao teatro. Antes da revolução dedicava-se a um género ligeiro, com números de revista e de “variedades”, “como imitador, animador, fantasista – fazia imitações do Salazar, do Fidel Castro e do Jânio Quadros, por exemplo. Era o humor “autorizado” e como tal inócuo, mas mesmo assim até a publicidade aos espectáculos em que participei passava pela censura” e em todos os que fez no norte do país foi vigiado por um agente da PIDE, “facto que só vim a descobrir uma vez no regresso de um espectáculo em Vila Meã: já no Porto, num restaurante da rua do Bonjardim, sentou-se a meu lado um amigo de longa data, com quem aliás tinha fundado um outro grupo amador, que me quer apresentar um amigo. – Ó Pardal, sente-se aqui com a gente e tal, disse-lhe ele. O pardal senta-se e apresenta-se e diz que já me conhecia, que era agente da PIDE e que o seu trabalho era seguir-me para onde eu fosse dar espectáculos.” Mas havia mais, e pior: foi quando descobriu que o “amigo” que lhe tinha apresentado o pardal da pide, “era coronel da Legião Portuguesa(12). Mas viveu muitos outros episódios igualmente pícaros, quase trágicos ou quase cómicos, de tão pícaros. Uma vez, na Murtosa, num espectáculo numa casa pequenina, era assim como o Trindade, tinha também assim os camarotes. Estava cheia mas a malta, não sei porquê, talvez receosa, permanecia indiferente, não estava a reagir ao esforço dos artistas; quando foi a minha vez e cheguei à última imitação, a do Salazar, (a imitação era dissimulada, como é óbvio) há um tipo num dos camarotes que não resiste, levanta-se e desata aos gritos ah e tal se fosses o gajo dava-te dois tiros! Ainda me apercebi que um dos dois guardas republicanos ao fundo da sala tinha desaparecido. Quando saí, um dos meus colegas disse-me que tinham levado o infeliz do camarote. No fim do espectáculo fomos à esquadra onde os guardas estavam convencidíssimos que tinham detido um perigoso comunista que queria matar o “nosso senhor presidente do conselho”; vimo-nos gregos para os convencer que a imitação não era do “presidente do conselho” mas do meu avozinho e lá soltaram o infeliz”. Outra vez quase foi levado ele próprio para a esquadra, por causa do mesmo número, num espectáculo no velho Palácio de Cristal, no Porto. Foi salvo pela intervenção do  governador-civil em pessoa, “um sujeito que era pai do gajo que mais tarde, depois do 25 de Abril, foi presidente da Câmara de Marco de Canavezes”, que até tinha apreciado a imitação e, não a considerando nada ofensiva do senhor presidente do conselho, fez questão de o ir cumprimentar ao camarim. “Estas coisas passavam-se. A malta de hoje não faz ideia, tem dificuldade em acreditar”.

Quando se instalou na Figueira, apesar de ter logo participado num espectáculo de Natal, com um número infantil, para beneficência, no salão dos Bombeiros Voluntários, Mário não conhecia ninguém. Um dia ia a passar na Rua da República e ouviu música. Era a sede da Naval; entrou “estava lá uma tropa nos comes-e-bebes, mais nos bebes que nos comes. Um deles reconheceu-me de uma entrevista que eu tinha dado uns tempos antes à revista Plateia. Quiseram logo que eu participasse no espectáculo deles, num intervalo da orquestra, na altura era a orquestra casino, que fazia as matinés e tal. E já não me deixaram sair, tive depois que andar com eles a correr as capelas todas, ah é o artista do Porto que veio pra cá viver, diziam eles”. Enturmado na boémia, também depressa se integrou nos meios do reviralho: “no bilhar com o Dr. Rui Alves e o Dr. Luciano; com o Zé Ribeiro cheguei a ter algumas reuniões lá em casa; e com a Dnª Alzira Fraga. Da malta “jovem” convivi com o Zé Martins(13) e com o Lopes Curto fui a todo o lado, cheguei a ir a reuniões a Poiares, numa farmácia, com o Dr. Arnault (mais  tarde criador do Serviço Nacional de Saúde)”isto porque, antes de Abril, todos os anos, a 5 de Outubro, os democratas da Figueira celebravam a República num grande repasto de confraternização no Tubarão (restaurante) e nesse ano, ele foi convidado a vir à Figueira. “Foi num ano de “eleições” em que o nosso candidato (das forças democráticas) era o professor Mário Silva(14) – o pai do pintor (fui muito amigo de ambos). A polícia estava toda à porta, o Tubarão estava cercado, e é curioso que havia um fotógrafo, que se dizia que tinha vindo do Porto e tinha tomado conta do café Caçador, que andava por lá a tirar fotografias, fotografou tudo e todos e… passado um bocado o Sá Pinto (“digníssimo” polícia da nossa praça) chega lá “Meuxenhores, já tiberam tempo d’acabar” e vai à mesa e pergunta quem é o responsável pelo ajuntamento; Cristina Torres levanta-se e diz “Sou eu”. “Estão a chamá-la ao telefone”. A velha senhora atravessa a longa sala de refeições e depois também o café a todo o comprimento, sempre acompanhada do Melo Biscaia(15) e de alguns outros, até onde estava o telefone. “O pessoal todo a dizer não vás, não vás e nesse momento, o Mário Rente, que era um tipógrafo sobejamente do reviralho, levanta-se, sobe acima de uma cadeira e grita: viva a democracia, viva a liberdade. O Sá Pinto olha pra ele de viés e segue Cristina Torres até ao telefone onde lhe diz que não existe chamada nenhuma e a insta a desmobilizar a reunião “senão tinha ordens para actuar”. Depois foi o Melo Biscaia que tomou a palavra “meus amigos, a polícia não nos permite ocupar este espaço e prosseguir este convívio por isso vamos ter que sair“, e saímos – vamos aonde, onde vamos, e fomos para Coimbra, onde havia um comício da oposição, no Avenida, com o Prof. Mário Silva”. Quando chegaram, o comício já tinha começado, o teatro também estava cercado e a polícia não deixou entrar mais ninguém porque “estava lotado”, ”ainda insistimos, claro, éramos muitos e sabíamos que não era verdade”, mas o guarda foi esclarecedor: “se os senhores continuam, eu tenho que chamar apoio e os senhores sabem para onde vão. Era assim.

Mas foi então após a revolução que Mário começa a fazer teatro. “Com a liberdade comecei logo, até dentro do partido(16), a fazer teatro para crianças. Eu estava no executivo (a direcção local) e também estava na direcção da célula dos comerciantes.” Tinha entretanto criado na Naval, com a conivência de Rui Alves, que era o presidente do clube, uma secção cultural, reavivando um grupo cénico que estava encerrado havia mais de cinquenta anos. “Um dia veio cá um elemento do comité central. E na reunião, quis saber quem é que estava em colectividades, instando-nos a levar à cena preferencialmente textos da autoria de “camaradas”. Então porquê, disse eu – ah e tal os direitos de autor e tudo isso… Está claro que recusei. Disse-lhe que nunca tinha escolhido textos por conveniência e muito menos pela filiação ou cartão de sócio do autor mas pelo que a minha sensibilidade me dizia que era eficiente ou oportuno. E continuei a fazê-lo. Mais tarde ainda fui chamado a Coimbra, a uma reunião com outro elemento do comité central que me disse que o partido não aceitava bem a minha recusa em obedecer à tal directiva. Eu disse muito bem, então o partido que faça. Desvinculei-me de todas as responsabilidades partidárias e até da militância. É claro que continuo com o mesmo ideal, é aquilo que eu encontro mais próximo do que sonho e pretendo, é nele que continuo a votar e o único em que apesar de tudo me revejo. Mas saí – porque se antigamente tinha a PIDE atrás de mim, a dizer-me o que dizer e como – agora, com a liberdade, não estava para ter o meu partido a fazer-me o mesmo. Foi assim que criei o grupo na Naval, que depois cresceu. Tenho muito orgulho, por exemplo no “Baixinho”(17) que era nosso companheiro e depois, incitado por mim e por outros foi estudar teatro para Évora, e hoje é o actor que todos reconhecemos”.

Em seguida Mário propôs-se criar um outro projecto teatral, desta vez na Assembleia Figueirense. Foi um processo penoso e mal sucedido porque não havia palco, era um pequeno palanque onde “encenámos um monólogo, da autoria do António Tavares, e ficamos por aí porque o apresentámos em estreia para a direcção e sócios e não apareceu ninguém.” Depois, aceitou um convite dos Grupo Caras Direitas, onde esteve vários anos. “Aí sim, tive o prazer de ter a colaboração da direcção, o presidente vinha para o palco trabalhar com a gente, nada que ver com o senhor Quim de Sousa da Assembleia Figueirense.” Foram encenadas várias peças e uma delas, “Alguém terá de morrer”, de Luis Francisco Rebelo, esteve em cena vários anos. “Tivemos, no entanto, que combater muitos preconceitos, ou ideias feitas, como a do teatro como uma recitação cantada, como a tabuada em mau estilo vicentino, de textos que nem sequer são em verso.” Outra ideia feita, é uma fixação obsessiva e muito literal no guarda-roupa – que tem que ser, porque-tem-de-ser como o da época, “tive muita dificuldade em convencê-los que apesar de um texto ser antigo, pode e deve, se estiver actual, ser apresentado sem o cerimonial pretensioso de uma reconstituição. Mas é evidente que essa fixação nos cenários e no guarda-roupa continua, infelizmente, a persistir nas mentalidades de muitos amadores das nossas colectividades”.

Uma vez, no fim de um festival de teatro amador, foi convidado por responsáveis de uma colectividade do sul do concelho, porque o ensaiador se tinha despedido à francesa e porque tinham ficado impressionados pelo trabalho que o grupo dos Caras tinha aí apresentado. “Eu recusei, porque ainda estava ligado aos Caras e porque gostava de lá estar, além disso havia as deslocações para ensaios e tal… “ah, a gente paga-lhe tudo” – eu continuei a recusar. “Então, quanto é que lhe pagam?” Eu olhei para eles e disse-lhes “olhem, não estou mesmo interessado”, “- como não está interessado?O senhor diga quanto quer, que a gente paga-lhe”. Pior ainda, pensei. Mas depois expliquei-lhes: “olhem, eu sou cabeleireiro, é o meu trabalho e é dele que vivo. O teatro é a ajuda que tenho para continuar a viver, eu amo o teatro, quero teatro, preciso do palco e gosto de representar, mas nunca o fiz por dinheiro” – “Ah, pensávamos que lhe pagavam” – “Não, não pagam – que eu não quero”. Pediram-me desculpa, e ficamos assim.” E sempre foi assim, toda a vida. Até com o cinema, mais recentemente.

O cinema surgiu-lhe após a morte da esposa, “porque depois eu parei com o teatro, não tinha coragem para estar em palco… porque ela assistia aos ensaios e quando tinha cá os netos ela levava-os e tudo isso… e tive muita dificuldade em voltar a encontrar-me com o palco. Mas depois surgiu o Lita(18) que precisava de gente para participar num filme e alguém lhe tinha falado de mim. Eu não o conhecia (ele é da idade das minhas filhas) mas estou sempre disponível, não estou fechado a ninguém, e disse-lhe “se é para comédia muito bem; se é para drama é mais difícil porque começo a chorar logo às primeiras palavras.” Desde então Mário já interpretou um bom punhado de filmes, incluindo um drama e até uma pequena participação num filme que, para sua surpresa, obteve um prémio num festival de cinema LGBT, no Brasil. Sempre com a mesma atitude disponível, aberta a todos e com o mesmo empenho desinteressado e generoso – como verdadeiro amador que sempre tem sido. Toda a vida.

1 – Companhia Grupo de Teatro Modestos – Fundada em 1902, no Porto, uma das mais influentes da cidade, popularmente conhecida por “Modestos”. Foi escola de muitos actores e levou à cena peças que ficaram na memória colectiva do Porto, além de ter sempre abraçado uma componente solidária: sob o lema “Arte, caridade e beneficência”, as receitas de bilheteira ajudaram diversas instituições e bombeiros locais.

2 – António Pedro (1909-1966) – actor, encenador, escritor, poeta, jornalista pintor, antiquário e coleccionador de arte. Foi um dos introdutores do surrealismo em Portugal e fundador, director, figurinista e encenador do TEP, de 1953 a 1961.

3 – Ruy Luís Gomes (1905-1984) – matemático e um dos fundadores do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. Era professor catedrático na Universidade do Porto quando foi demitido (em 1947, tal como Mário Augusto da Silva, de quem foi amigo desde os estudos em Coimbra) por ter reclamado contra a prisão pela PIDE de uma aluna sua. Entre 1945 e 1957 esteve preso em, pelo menos, dez ocasiões, devido à sua atividade política. Presidiu à Comissão Central do Movimento de Unidade Democrática (MUD) até à sua desagregação, em 1947. Foi vice-presidente da Comissão Distrital do Porto da Candidatura do General Norton de Matos à Presidência da República, em 1949. O Partido Comunista Português promoveu a sua candidatura à Presidência da República em 1951. Esta candidatura foi rejeitada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

4 – A Revolta de 31 de Janeiro de 1891 foi o primeiro movimento revolucionário que teve por objectivo a implantação da república em Portugal. Hasteada uma bandeira vermelha e verde, com fanfarra, foguetes e vivas à República, a multidão decidiu subir a Rua de Santo António, em direcção à Praça da Batalha, com o objectivo de tomar a estação de Correios e Telégrafos. No entanto, o festivo cortejo foi barrado pela fuzilaria de um destacamento da Guarda Municipal posicionado na escadaria da igreja de Stº Ildefonso, no topo da rua: 12 mortos e quarenta feridos. Em memória desta revolta, logo que a República foi implantada em Portugal, a então designada Rua de Santo António foi re-baptizada para Rua 31 de janeiro.

5 – Fernando Bissaya Barreto (1886-1974) – professor de Medicina, político e benemérito entrepreneur. Na juventude, pertenceu, quando frequentava o 4.º ano de Medicina, ao comité civil da organização carbonária autónoma de Coimbra, “Carbonária Portugália”, em Janeiro de 1910. Ao mesmo tempo, fez parte da loja maçónica Revolta  com o nome simbólico de Saint-Just, tendo atingido o 5.º grau do rito francês. Depois, foi deputado à Assembleia Constituinte (1911), dirigente do Partido Republicano Evolucionista e logo-a-seguir da União Liberal Republicana. Após o golpe de estado de 28 de Maio de 1926 aderiu à União Nacional e parou de evoluir. Mas tornou-se uma das mais emblemáticas e influentes eminências pardas do regime salazarista e criou, sempre com fundos públicos mas em nome pessoal, entre muitas outras coisas, o parque temático portugal dos pequenitos. Hoje ainda existe uma Fundação com o seu nome.

6 – Afonso Cruz – fotógrafo com estúdio aberto na Rua Cândido dos Reis durante décadas. Velho oposicionista e pioneiro da fotografia aérea em Portugal (avô do conhecido escritor com o mesmo nome e irmão do pioneiro da aviação Humberto Cruz).

7 – Gilberto Vasco – resistente comunista, médico pediatra com consultório na Figueira desde os anos cinquenta.

8 – António Augusto Menano – poeta, crítico literário e artista-plástico. Foi gestor hospitalar e vereador da Câmara Municipal da Figueira da Foz .

9 – Jorge Dias – fotógrafo oriundo da Marinha-Grande que na época cumpria serviço militar na Figueira e depois se estabeleceu na cidade com um estúdio de Fotografia, no Passeio Infante D. Henrique (Jardim Municipal).

10 – A Voz da Justiça – jornal republicano que se publicou na Figueira da Foz de 1902 a 1937 e foi encerrado  pela PIDE, que apreendeu também a tipografia e deteve o seu principal redactor, José da Silva Ribeiro.

11 – José da Silva Ribeiro (1894-1986) – teatrólogo e director, desde 1915, do grupo cénico da SIT (Sociedade de Instrução Tavaredense).  Republicano e democrata convicto, com a alteração do regime político, em 1926, sendo funcionário público, foi transferido compulsivamente para a Câmara de Cantanhede, mas não tomou posse, aceitando o convite do seu conterrâneo Manuel Jorge Cruz, para ir secretariar o jornal “A Voz da Justiça”, onde também foi um jornalista acutilante e brilhante crítico teatral. Foi preso em 1933, sendo deportado para Angra do Heroísmo, onde esteve cerca de um ano em regime de incomunicabilidade. Em 1937 o jornal “A Voz da Justiça” foi suspenso pela censura, a Tipografia Popular, da qual era sócio, saqueada e encerrada pela PIDE, e ele de novo detido. Dedicou toda a sua vida à liberdade, à educação e ao teatro.

12 – Legião Portuguesa (LP) – organização, integrando uma milícia, que funcionou durante o período do Estado Novo. Criada em 1936 com o objetivo de “defender o património espiritual da Nação e combater a ameaça comunista e o anarquismo“.

13 – José Fernandes Martins (1941-2004) jornalista. Fundador e director do “Barca Nova”, Semanário Democrático e Progressista, que se publicou na Figueira entre 1977 e 1983.

14 – Mário Augusto da Silva – (1901-1977) Bolseiro na Universidade de Paris a partir de 1925, onde foi assistente de Madame Curie, e aí se doutorou em Ciências em 1928. Em 1929 iniciou em Coimbra trabalhos com vista ao estudo dos núcleos atómicos, que tiveram de ser interrompidos por exigência da universidade. Juntamente com o Professor de Medicina Álvaro de Matos, criou em 1931 o Instituto do Rádio de Coimbra. Apesar de pronto a funcionar e de Madame Curie ter aceite vir à inauguração, o que devia ter sido o primeiro Instituto de Física Nuclear português e também o primeiro Instituto de Oncologia nunca foi oficializado. Em 1941 foi eleito membro da “American Physical Society”. Foi um dos mais destacados físicos portugueses do século vinte. Professor catedrático em Coimbra, foi afastado compulsivamente do ensino por motivos políticos em 1947 e reintegrado apenas em 1971. Ainda colaborou no planeamento do Museu Nacional da Ciência e da Técnica (de que veio a ser Director em 1974) e na criação do Museu da Física.

15 – Luis de Melo Biscaia (1928-2015) – advogado com escritório num largo que agora leva o seu nome. Prestigiado anti-fascista, integrou a campanha de Humberto Delgado e mais tarde a assembleia Constituinte. Integrou o governo de Lurdes Pintasilgo e foi autarca na Figueira por três mandatos.

16 – Partido Comunista Português.

17 – António Durães (1961) – actor e encenador profissional. Vive em Braga desde 1986. É, desde 2000, professor da disciplina de Interpretação no Curso de Teatro da Escola Superior de Música e das Artes do Espectáculo, do Porto.  Antes de se tornar profissional interpretou e encenou duas peças na secção cultural da Ass. Naval 1º de Maio.

18 – Luís Albuquerque (1963) – ex-jogador de basquetebol, músico e cineasta.