por Carolina Campos
Quando pensamos na Serra da Boa Viagem, as espécies que nos vêm à cabeça primeiro serão talvez os pinheiros-bravos, os eucaliptos e as acácias que hoje em dia predominam, graças às arborizações dos anos de 1910-30. Se calhar também cedros. Mas há pelo menos 200 anos que temos registos de haver por lá também medronheiros (Arbutus unedo), e ainda persistem aqui e ali os chamados medronhais, pequenos habitats com um conjunto de espécies de plantas associadas a essa árvore, e espécies animais que por sua vez se associam à vegetação. Em 2018 foi feito um projecto de final de licenciatura em Biologia que estudou as comunidades de plantas e invertebrados de um destes medronhais, e segue-se aqui um relato resumido dos resultados.
Na zona da Serra da Boa Viagem que foi estudada, um rectângulo de menos de 1km² em que foram identificadas 175 espécies, os solos têm duas particularidades: são calcários, e são muito perturbados, por caminhantes, ciclistas, motociclistas, e pelo rebuliço da estrada mesmo ao lado. Isto formou aquilo a que se chama um mosaico: uma junção de espécies típicas de medronhais, de solos calcários, e de ambientes ruderais, isto é, muito perturbados por humanos. Foi através desta componente de flora ruderal que foi lá parar uma diversidade admirável de orquídeas selvagens, 6 espécies que podem ser vistas na primeira imagem, e ainda por cima com nomes bem engraçados: rapazinhos ou erva-do-homem-enforcado (1, Aceras anthropophorum), satirião-menor (2, Anacamptis pyramidalis), heleborina-branca (3, Cephalanthera longifólia), erva-abelha ou alpivre ou abelheira (4, Ophrys apifera), erva-vespa ou abelhinha (5, Ophrys lutea), e erva-espelho, ou abelhão, ou abelhinha-lusitana (6, Ophrys speculum).

O medronheiro é uma árvore particular: os frutos amadurecem ao longo de grande parte do ano e ela chega por isso a ter flores e frutos ao mesmo tempo, e portanto atrai muitos polinizadores e animais frugívoros. Forma associações especializadas com algumas espécies de insectos, como a borboleta-do-medronheiro (Charaxes jasius), da qual foi vista aqui uma lagarta, e as plantas que compõem o resto da vegetação por sua vez também atraem insectos tanto generalistas como mais especializados. As flores do sargaço, do estevinho e da roselha (Cistus monspeliensis, Cistus salviifolius e Cistus crispus) e do pilriteiro (Crataegus monogyna), vistosas e abundantes como são, atraem muitos dos insectos polinizadores. As orquídeas, por sua vez, têm as suas estratégias, algumas oportunistas: várias delas, como os nomes indicam, parecem-se com abelhas, a abelheira imita também o odor de uma abelha fêmea, e a heleborina-branca imita o pólen do estevinho.

Algumas das espécies de insectos vistas no local: 1 – Jaquetão-das-flores-mediterrânico (Oxythyrea funesta) e Empis tessellata (a mosca) numa flor de sargaço (Cistus monspeliensis); 2 – Oncocephalus gularis; 3 – Chrysanthia viridissima numa flor de roselha (Cistus crispus); 4 – Graphosoma lineatum numa flor de tápsia-menor (Thapsia minor); 5 – Formiga-carpinteira (Camponotus cruentatus) em flores de pilriteiro (Crataegus monogyna); 6 – Lagarta de Euphydryas aurinia em folhas de pilriteiro.
Alguns insectos são solitários, outros sociais, uns muito abundantes e outros pouco, e o resultado final aqui foi uma comunidade com as espécies distribuídas de forma complexa; relativamente poucas espécies de escaravelhos mas muitos indivíduos de cada uma, por exemplo. Uma explicação para isto poderá ser a teoria segundo a qual às vezes espécies muito parecidas competem demasiado pelos mesmos nichos e alimentos, o que faz com que as espécies mais abundantes passem a ser mais diferentes umas das outras.
Olhando bem para as espécies vistas e os hábitos de cada uma, são-nos revelados vários níveis de cadeias alimentares. Plantas como o anafe-menor (Melilotus indicus) e ranúnculos (Ranunculus sp.) tinham afídeos, e andavam por lá também espécies de formigas (Camponotus cruentatus e Lasius niger) que se alimentam de afídeos: plantas atraem insectos que por sua vez atraem outros insectos que se alimentam deles. Ou então outros como a mosca Thaumatomyia notata, que se alimenta exclusivamente de afídeos em adulta mas de raízes em larva. Alargando mais as possibilidades de ligações, podemos referir o jaquetão-das-flores-mediterrânico (Oxythyrea funesta), um escaravelho que para além de se alimentar de flores em adulto, pode-se alimentar em larva de excrementos de coelho, e caçadores confirmaram que esta zona tem coelhos. Andando por lá, eles comerão da vegetação, e assim se completa o círculo, o chamado ciclo de nutrientes.
Em relação aos polinizadores, foram observados fenómenos curiosos. Por exemplo, o besouro-capuchinho (Heliotaurus rufficolis), uma espécie generalista, foi visto em flores de várias espécies de várias famílias em Junho, mas exclusivamente em flores de tápsia-menor (Thapsia minor) em Maio apesar de haver bastantes outras espécies em flor nessa altura. Há escaravelhos que preferem flores de cores específicas, mas neste caso nem isso funciona como explicação. O percevejo Graphosoma lineatum, por outro lado, só aparecia em flores de tápsia-menor provavelmente porque é essa a família de plantas que prefere (Apiaceae, a família por exemplo do funcho e da cenoura-brava), e essa espécie era a única apiácea em flor. Pensa-se normalmente que grande parte da polinização é feita por abelhas e abelhões, mas aqui a maioria dos insectos polinizadores eram escaravelhos, ao mesmo tempo que na planta com maior diversidade de polinizadores (a tápsia-menor), metade eram moscas. A zona mediterrânica é, aliás, um ponto do mundo com uma particular concentração de espécies de plantas adaptadas à polinização por escaravelhos.
Depois também há os que têm dietas definidas: o escaravelho Chrysolina americana, por exemplo, quase só se alimenta de alecrim (Rosmarinus officinalis) e de lavandas. Para além da polinização e da herbivoria, há ainda outro tipo de relação que os insectos podem ter com plantas, o parasitismo. Algumas espécies põem ovos em folhas, e as larvas ao eclodir escavam túneis e galerias dentro da folha, que podem ser vistas a olho nu. Este tipo de relação é normalmente muito específica, cada espécie de insecto faz isso com uma determinada espécie ou grupo de espécies de plantas, e os “desenhos” que deixa nas folhas são também tão específicos que podem chegar para a identificar. Puderam ser vistas neste ano as galerias esbranquiçadas que parecem desenhadas a marcador grosso nas folhas de madressilva (Lonicera etrusca) que deixa a mosca Phytomyza lonicerae, e linhas finas, retorcidas e prateadas nas folhas de sanguinho-das-sebes (Rhamnus alaternus) feitas pela traça Bucculatrix alaternella – os nomes latinos das plantas passam para os nomes dos insectos, de tão ligados que estão. Às vezes é tão raro ver os indivíduos adultos que estas marcas em folhas são o único sinal da presença das espécies.
Noutros casos, o resultado do parasitismo são galhas, crescimentos anormais nas folhas ou caules de plantas, e estas também são específicas o suficiente para, sabendo em que planta estão, levarem a uma identificação do insecto que as causou. Por cá os carvalhos são particularmente susceptíveis a isto, e há por aí muitos cobertos de galhas. Neste medronhal havia sinais de duas espécies da família das chamadas vespas-das-galhas: um carrasqueiro (Quercus coccifera) com galhas de Plagiotrochus quercusilicis, e uma roseira brava (Rosa sp.) com galhas de Diplolepis eglanteriae, nos dois casos com aspecto quase de bagas vermelhas.

Galerias e galhas: 1 – Galerias de Phytomyza lonicerae em folhas de madressilva (Lonicera etrusca); 2 – Galerias de Bucculatrix alatenella em folhas de sanguinho-das-sebes (Rhamnus alaternus); 3 – Galha de Plagiotrochus quercusilicis num carrasqueiro (Quercus coccifera); 4 – Galha de Diplolepis eglanteriae numa roseira-brava (Rosa sp.).
Há ainda, dentro dos bichinhos pequeninos, as aranhas. No meio de todas estas flores de cores diferentes, vale a pena destacar uma família, a das aranhas-caranguejo (Thomisidae). Elas não tecem teias, põem-se em cima de flores e ficam à espera de insectos que as vão polinizar – o nome vem das patas da frente serem muito maiores que as de trás, para apanharem as presas. Faz parte desta estratégia de caça por emboscada as próprias aranhas serem muito coloridas: a aranha-caranguejo-verde-pequena (Diaea dorsata) é na verdade verde, amarela e castanha; a aranha-caranguejo-das-flores (Misumena vatia) consegue mudar de cor entre branco e amarelo, como os camaleões mas mais devagar; e a aranha-caranguejo-de-Napoleão (Synema globosum) tem quatro variantes, machos pretos e fêmeas amarelas, vermelhas ou brancas (com um padrão a preto que faz lembrar a silhueta icónica de Napoleão). Nem sempre se põem em flores da sua cor, mas acontece muitas vezes e a camuflagem efectivamente funciona. Estudos descobriram que isto pode reduzir a polinização, mas mais numas espécies de plantas que noutras e especialmente com as abelhas-do-mel (Apis mellifera). Elas persistem, mesmo assim.
Já houve uma altura em que habitats como os medronhais e também os carvalhais predominavam muito mais na Serra da Boa Viagem, mas a tendência figueirense para deitar árvores abaixo não é de agora. No sec. XIX houve muita destruição por causa de disputas por posse de terrenos, e antes dos abates para construir estradas ou substituir espécies nativas por espécies invasoras, já se desbastava e queimava vegetação para afastar lobos que pudessem atacar o gado, e as clareiras eram depois repovoadas por tojo, urze, giesta e murta. Segundo relatos, em 1911 urze e tojo era quase tudo o que havia, mais algumas oliveiras. Os habitats que se podem ver na Serra são o resultado de toda essa história, sem ela poderíamos estar a olhar para floras diferentes, e faunas diferentes atraídas por elas. No que temos agora, apesar da proliferação de espécies invasoras e outros danos causados pelo Homem, ainda podemos observar os pormenores intrincados do funcionamento de um ecossistema sem sequer nos afastarmos muito da berma da estrada. Prestar atenção já é alguma coisa, lembra-nos do que é preciso proteger.
Quem quiser conhecer mais pode visitar a Serra, ver na aplicação iNaturalist o que outros vão observando e fotografando lá, seguir o que nós vamos partilhando sobre a biodiversidade da Figueira da Foz, e/ou ler as seguintes obras, algumas delas disponíveis na Sala Figueirense da Biblioteca Municipal:
- Martins, M. J. da S. (1999). Estudo fitossociológico e cartográfico da paisagem vegetal natural e semi-natural do litoral centro de Portugal entre a Praia de Mira e a Figueira da Foz. Fac. de Ciências e Tecnologia da Univ. de Coimbra.
- Sousa, R., Carriço, G., & Pinto, J. M. S. (2016). Serra da Boa Viagem Dunas de Quiaios e Lavos Ilha da Morraceira – Elementos da Flora. (Município da Figueira da Foz, Ed.). Figueira da Foz: Tipografia Cruz & Cardoso.
- Rei, M. A. (1925). Arborização da Serra da Boa Viagem da Figueira da Foz (Subsídios para a sua história) 1911 – 1924. Figueira da Foz.
- Rei, M. A. (1932). Tese: Arborização. Procuremos fomentar a arborização dos terrenos incultos, como base da riqueza nacional, e teremos cumprido um dos deveres que a Nação nos impõe. Figueira da Foz: Tipografia Popular.