por Fernando Campos
Em geral, aquilo que se chama normal é apenas vulgar e mediano, ou medíocre. Não na Figueira da Foz. Este carácter de excepção à regra da generalidade faz da Figueira um local peculiar onde a norma é, de ordinário, mais rasa e amorfa do que em outras latitudes, e a excepção é, em simultâneo, de ordem inversa; isto é, tende a ser superlativa, luminosa, magnífica, excelsa, admirável.
Há figueirenses – raros, claro, excepcionais – que parecem ter nascido e vivido para justificar este paradoxo.
A Passarola vai evocar alguns deles – não como exemplo – porque seria desnecessariamente embaraçoso para a bitola figueirense de normalidade – mas como memória histórica, e ilustração do paradigma.
Manuel Fernandes Tomás (1711-1822)
“A Religião nasceu com o homem,
e há-de acabar com ele.
Não se espere outra coisa.”
Manoel Fernandes Thomaz,
in discurso sobre a liberdade de imprensa,
Manoel Fernandes Thomaz* nasceu a 31 de Julho de 1711 na Rua dos Tropeções, na Figueira da Foz e está sepultado mais abaixo, na Praça Nova, aos pés do monumento que lhe foi dedicado, erigido por subscrição pública proposta por quatro operários figueirenses e inaugurado em 1911. O feriado municipal na Figueira chegou a ser comemorado a 31 de Julho mas, como as revoluções num país velho e relho como o nosso nunca passam de pequenos sobressaltos na pasmaceira, em menos de três quinze dias voltou tudo a como era dantes (as gentes gostam de viver habitualmente) e hoje é comemorado no dia de um dos santinhos mais populares. Ah, e a Rua dos Tropeções chama-se agora Rua 31, mas de Janeiro (não há melhor, para nublar as referências da memória histórica, do que embaralhar datas e eventos).
O nosso Manel era um gajo invulgar, peculiar, excepcional. Ele era um advogado, jurisconsulto – até chegou a juiz-de-fora, em Arganil – que não tolerava a injustiça, imaginem. Autor de diversos estudos sobre Direito e Administração Pública, redigiu o curiosíssimo “Repertório Geral ou Índice Alphabetico das Leis Extravagantes, publicadas depois das Ordenações, comprehendendo tambem algumas anteriores, que se achão em observancia” (1815, 2 volumes) que, como o título indica, era uma compilação das leis medievais ainda em vigor no seu tempo, isto é, já depois do século das luzes. Contudo, mesmo influenciado pelo iluminismo, a revolução francesa e pelas ideias da Enciclopédia de Diderot, combateu os franciús – organizando a resistência ao general Junot na Figueira, e chegou mesmo a intendente dos víveres no quartel-general do marechal William Kerr Beresford (um estafermo fachola escolhido a dedo pelo duque de Wellington para comandar o exército português e que depois foi ficando ficando ficando, e acabou a ditador plenipotenciário, a comandar tudo). Depois deste ter ordenado a vil execução do General Gomes Freire de Andrade, o nosso Manel, que abominava o despotismo e amava a liberdade, fez-se agitador, subversivo, panfletário, escreveu proclamações, manifestos, folhetos de polémica pública, artigos na imprensa periódica e foi ao Porto inventar o Sinédrio para conspirar a revolução contra a tirania dos bifes (e o absolutismo e a estupidez em geral). Revolução que haveria de chegar na manhã radiosa do dia 24 de Agosto de 1820, dando início à instauração de um regime constitucional. Logo a seguir integrou a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino e redigiu o Manifesto aos Portugueses, um documento de divulgação dos objectivos do movimento – a convocação de Cortes e a aprovação de uma Constituição.
Eleito deputado pela Beira, destacou-se como um dos mais activos tribunos, com especial relevo na elaboração das Bases da Constituição da Monarquia Portuguesa e para o articulado da Constituição Política da Monarquia Portuguesa. A 26 de Fevereiro de 1821 foi eleito presidente das Cortes Constituintes, cargo que exerceu até 26 de Março do mesmo ano.
Da sua intensa actividade parlamentar, destaca-se a apresentação do Relatório acerca do Estado Público de Portugal (Sessão de 5 de Fevereiro de 1821) e a participação no debate do projecto para a abolição da Inquisição: “Não se declare antes razão nenhuma: essa é ofensiva ao decoro e luzes do Século e sentimentos desta Assembleia. Seria ridículo que no Mundo se dissesse que se tinha extinguido a Inquisição porque não se podia sustentar, extingue-se porque não deve existir num País em que há homens livres.” (Sessão de 31 de Março de 1821).
Morreu em Lisboa, a 19 de Novembro de 1822, duas semanas após a aprovação do texto constitucional. Combateu o absolutismo, os franceses e os ingleses; e venceu-os a todos, sem jamais ter aceite ser remunerado pelo seu desempenho de cargos públicos (é claro que – para que se veja quanto as suas ideias eram avançadas para a época – logo a seguir, em 1823, a sua Constituição foi contestada por D. Miguel e, depois da guerra civil, foi substituída por outra, muito mais maneirinha e consensual, pelo seu mano mais velho, D. Pedro).
Hoje, para as novas gerações, e até para as velhas, Manuel Fernandes Tomás é um ilustre desconhecido, apenas um nome.
Mas “Que nome, senhores, que nome nos fastos da liberdade! que pregão às idades futuras! que brado às gerações que hão-de vir! Este nome será só por si a história de muitos séculos, este nome encerra em compêndio milhões de males arredados de um grande povo: bens incontáveis acarretados sobre ele. […] escrevei-lhe sobre a lápide sepulcral: Aqui jaz o libertador dos Portugueses: salvou a Pátria, e morreu pobre” , disse dele o poeta Almeida Garrett (este também era um gajo do carago – ele era do Porto – mas hoje não é para aqui chamado).
Em todo o caso, se quereis saber mais deste figueirense excepcional, e da sua época, tendes que ler. Por isto a Passarola recomenda:
– Escritos políticos e discursos parlamentares: 1820-1822, Manuel Fernandes Tomás
– Manuel Fernandes Tomás: ensaio histórico-biográfico, José Luís Cardoso
– A revolução de 1820, Manuel Fernandes Tomás; prefácio de José Tengarrinha
– A revolução de 1820: memórias, José Maria Xavier de Araújo
– A revolução de 1820: a sua obra e os seus homens, João de Barros
Se fordes da Figueira, podeis requisitá-los na Biblioteca Municipal Pedro Fernandes Tomás. Se não fordes, podeis fazê-lo em qualquer outra biblioteca pública que se preze.
Lede, lede. E podeis dizer que ides daqui.
*O retrato do nosso Manel é da autoria do pintor lisboeta Silva Oeirense (1797-1868) e também não ficou nada mal.