memória histórica – Afonso Costa Cruz

por Fernando Campos

Breve evocação de Afonso Cruz
– seguida de algumas considerações sobre a estratégia do oblívio a propósito do seu legado

Afonso Cruz foi um fotógrafo que teve um studio aberto por mais de quatro décadas na rua Cândido dos Reis, na Figueira da Foz. Foi pioneiro da fotografia aérea em Portugal, autor das primeiras vistas aéreas da Figueira (1930-32) e de um portefólio impressionante de mais de meio século de actividade intensa e elevada qualidade artística que é um valioso património da história da cidade e um indispensável testemunho do seu mundo do trabalho, da sua geografia física e diversidade humana. Afilhado de Afonso Costa, também foi um cidadão atento, democrata e anti-fascista, fez a campanha de Humberto Delgado, foi correio clandestino e esteve preso três vezes pela PIDE.

Apesar de ter merecido do Município a Medalha  de Prata (de Mérito) por Serviços Prestados à Comunidade e de o CAE ter honrado com o seu nome uma saleta de exposições dedicada à fotografia, não logramos achar na net qualquer foto sua ou de sua autoria e apenas uma referência ao seu nome e actividade: o seu verbete do Arquivo Fotográfico Municipal, que não regista nem a data do seu nascimento nem refere a da sua morte. Hoje é conhecido como o avô do conhecido escritor com o mesmo nome.

Em Novembro de 1987, o Museu Municipal, a quem posteriormente haveria de legar o valioso espólio, fez uma Exposição Comemorativa da sua obra. Do catálogo, reproduzimos o registo, em folha dactilografada apensa, das 68 fotos que testemunham a abrangência do seu trabalho, uma foto sua dos tempos da aviação, e a transcrição da sua biografia, em datas, factos e cifras, que nela fez questão de incluir.

4 de Março de 1911
Nasce na Figueira da Foz, Afonso Costa Cruz filho de Manuel Roberto da Cruz, armador, e de Guilhermina Amaral Cruz, doméstica.
De 1918 a 1923
Instrução Primária
1923
Início à aprendizagem fotográfica na Foto-Europa sita na Rua dos Banhos, e frequência do curso nocturno da Escola Comercial.
1925
Continuação da aprendizagem fotográfica na Casa Joaquim Pereira Monteiro, onde é hoje O Livro, dirigida por três grandes artistas: Joaquim Pereira Monteiro (proprietário), Daniel Silva, António Pedrosa.
1930 a 1932
Serviço Militar na Força Aérea. Especialidade de Fotografia Aérea.
1.º Cabo no G.E.A.R. – Grupo de Esquadrilhas de Aviação República – na Amadora e na OTA.
Primeiras fotografias aéreas da Figueira da Foz e de Buarcos, tendo como piloto do avião, o seu irmão, oficial aviador, Humberto Cruz e o 1.º Sargento Runa, primeiro especialista em Fotografia Aérea e instrutor militar de Afonso Costa Cruz.
1933
Regresso à Figueira da Foz.
Emprega-se na Foto Armer, onde é hoje a Pop-Gel.
1934
Trabalhos fotográficos na Casa Havaneza.
1935-1942
Trabalhou na Fotografia Verus, na Esplanada Silva Guimarães.
Trabalhou na Foto Verus, na Rua Cândido dos Reis.
1942-1944
Casa com D.ª Maria Rosa Veríssimo.
Mobilizado para os Açores, como Sargento-Ajudante e chefe da Secção Fotográfica na Base N.º4 – Rabo de Peixe.
Conhece Humberto Delgado.
Nasce o primeiro filho, Carlos.
Desmobilizado, regressa à Figueira da Foz.
Nasce o segundo filho, Paulo.
1944-1945
Cria o estabelecimento “Studio Fotográfico Cruz”, na Rua Cândido dos Reis, onde ainda está.
1949-1953
Reinício da actividade artística.
2.ª Fase da Fotografia Aérea da Figueira da Foz, temas sobre o trabalho, geografia física e humana.
Início da inscrição em concursos fotográficos.
Serão mais de 100 “salões fotográficos” a que concorre.
1954-1956
“Studio Cruz”, transforma-se num dos centros da cavaqueira figueirense.
Afonso Costa Cruz, correio clandestino.
Preso pela P.I.D.E.
1958
Campanha do General Humberto Delgado.
Fotografias da campanha apreendidas pela P.I.D.E.
1959-1984
Continuação da sua actividade artística e comercial.
1985-1986
Última fotografia aérea “Ponte Nova, Parte Velha”.
Figueira a cores, “No tempo do Centenário”.
800$00
O único rendimento auferido por Afonso Costa Cruz, como profissional, pago pelas entidades oficiais da Figueira da Foz. Neste caso, pago pelo seu amigo e ex-condiscípulo, e o único que lhe reconheceu valor, Professor Carlos Cachulo e Costa, como Presidente da Comissão Municipal de Turismo.
1987
Outubro, por proposta do vereador do Pelouro da Cultura, senhor António Augusto Menano, é-lhe atribuída a Medalha de Prata (Mérito) por Serviços Prestados à Comunidade.
Novembro, Exposição Comemorativa da sua Obra.

O legado de Afonso Cruz e a estratégia do oblívio

O espólio que Afonso Cruz doou ao município ainda em vida (por volta do início dos anos 90) nunca foi, porém, estudado, catalogado, valorizado, editado e divulgado. Teve o mesmo fatídico destino que o de muitos outros; como o de Cristina Torres e o do seu esposo Albano Duque, por exemplo* que, por qualquer motivo que desconheço – falta de competências?, de orçamento?, de oportunidade?, de vontade política? – jazem, desde que lá entraram, no limbo do mais ignóbil esquecimento, depositados algures nos subterrâneos do Museu Municipal.

Esta opção política pelo oblívio não é, no entanto, apenas um fenómeno fortuito ou esporádico. Tem sido desígnio pertinaz dos Serviços Culturais de sucessivos executivos municipais. A prática constante, voluntariosa e deliberada de fazer nada não deixa de ser em si mesma, à sua maneira, um fenómeno cultural – na medida em que se tornou um hábito entranhado, um costume – bastamente eloquente e sintomaticamente revelador das idiossincrasias mentais de sucessivos decisores da política cultural municipal.

O actual presidente do município, por exemplo, o primeiro e último responsável por esta opção estratégica continuada – ele acumula as funções de vereador da Cultura, que tutela os serviços culturais – manifestou recentemente um veemente protesto contra a discussão sobre o legado do colonialismo e, logo a seguir, um ufaníssimo, algo serôdio, irredutível e mui peremptório orgulho da “nossa História” e do acervo do “nosso museu”, numa atitude que parece subscrever aquela vã filosofia que concebe a História como um objecto de culto e o Museu como um armazém dos artefactos dessa devoção.

Para o actual autarca da Figueira a História não é algo que se discuta nem o Museu o local apropriado para esse propósito; é natural por isso que qualquer espólio depositado no acervo deste não seja nunca tratado como memória viva, mas sempre como arquivo-morto.

Este spleen, ampla e alegremente sufragado (por omissão ou predisposição natural de grande número de consciências) aliado ao hábito arraigado de se não pensar demasiado, conforma o que alguém chamou zeitgeist, o espírito do tempo – uma aragem conceptual tão favorável à amnésia voluntária e à reverência apalermada que o alto-patrocínio municipal da estupidificação pelo entretenimento (o alegre financiamento do pimba em autênticas missas campais de entrada livre), olimpicamente justificado pelo edil como “despesa de investimento” na “auto-estima e alegria das gentes” que até “faz crescer o PIB” e tudo – não  suscitou sequer uma única gargalhada. O que talvez afinal também explique o actual estado da arte e da cultura na Figueira da Foz.

*o espólio de Joaquim Namorado foi a única excepção a esta “estratégia do oblívio”. Foi resgatado a tempo pela família do poeta e confiado ao Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, onde foi estudado e catalogado e está desde então acessível ao público.