por Fernando Campos
A Figueira não sabe, mas está mais pobre. A verdade é que nem suspeita nem se importa. É essa, suponho, a bem-aventurança da imbecilidade: foi agraciada com a inconsciência da sua própria infelicidade. Quanto ao pintor Filinto Viana, está finalmente livre, aos sessenta e nove anos.
A pintura consiste em dar a ver; e a tragédia de Filinto Viana foi ter nascido e vivido num sítio em que as pessoas nunca se aperceberam que por detrás (ou através ou para lá) do que sempre lhes pareceu uma figuração pueril, naïve e estereotipada estava o que Filinto realmente lhes quis dar a ver: a verdadeira pintura, pura e dura, cheia daquelas “petites sensations” voluptuosas de que falava Cezánne.
Filinto Viana foi o mais dotado e original pintor que conheci em actividade na Figueira da Foz. Um Pintor de uma sensibilidade em carne viva e à flor da pele; ele possuía (ou era possuído por) um sentido da cor inato e um instinto da composição surpreendente. Eu sei disto porque vi; partilhei com ele (tivemos ateliers contíguos) durante alguns anos o último piso de um edifício na rua Maestro David de Sousa.
O Filinto Viana era daqueles pintores que pensam Pintura desde que se levantam e sonham com ela até que se deitam. A sua relação com esta arte era a tempo inteiro. Filinto viveu amancebado com a Pintura 24 horas ao dia, sem férias nem fins-de-semana. Às vezes, com os amigos, tinha desabafos: “Estou farto dela. Tenho que parar,” como se falasse de uma amante muito exigente… Mas nunca conseguia estar longe da confusão do seu atelier mais do que umas horas.
A confusão, o caos, a desarrumação do seu atelier eram proverbiais entre quem o conheceu. Mas eram apenas o que o seu espírito anárquico de trabalhador incansável necessitavam para consumar uma imensa paixão, sempre insaciada. Nunca o vi fazer um estudo ou desenho preparatório. Atacava cada novo quadro como um toureiro, ou um pugilista: de pé, investia e depois recuava, andava para trás e para diante, sem jamais o perder de vista, depois investia de novo uma e outra vez numa ânsia tensa e silenciosa de jogador de xadrez, até que por fim o abandonava exausto, encostado contra uma parede. Depois, mais tarde, acabava-o como um matemático: ao fim de muitas horas a observá-lo pacientemente (de cima e de baixo, dos lados e por vezes até por trás) como se faz a um puzzle, não sei bem o que lhe fazia mas ouvia-o dizer de repente: “Fernando, já resolvi este”. Eu acabava o que estava a fazer, limpava os meus pincéis, (ele limitava-se a deixar os seus de molho) e íamos beber um copo. Depois eu ia para casa e ele voltava ao atelier. Ia começar tudo outra vez.
Contudo, esta foi uma paixão tardia e talvez por isso, mais madura, intensa e sem complexos. Quando Filinto descobriu a Pintura já passava dos trinta. Mas a paixão foi mútua e os frutos dessa relação tempestuosa são numerosos (ele foi um artista prolífico, torrencial) e essa foi a segunda tragédia de Filinto: teve que os vender, por necessidade, a preços sempre regateados cinicamente até à insignificância, a uma gente que nunca viu neles mais do que o imaginário ingénuo e sentimental que ela própria exigia a um pobre diabo de origem humilde e sem formação académica a quem, em pretensa atitude mecenática, pretendia “ajudar”. Filinto sabia disto. Várias vezes mo afiançou tristemente: “Merdas bonitas, Fernando; as pessoas só gostam de merdas bonitas.” – “…e baratas, Filinto; merdas bonitas e baratas”, retrucava-lhe eu.
Filinto devolvia-lhes o cinismo, sempre “ao gosto do freguês”. Mas nunca se coibiu de lhe acrescentar generosamente, através dum instintivo e anárquico método e de um critério colorista requintado, em camadas e camadas exuberantes de “petites sensations” voluptuosas e surpreendentes, muito para lá do que eles jamais serão capazes de entender, a mais pura, intensa, madura, reflectida e sentida Pintura que alguma vez se fez na Figueira da Foz.
Flaubert chamava burguês a “quiconque pense baissement”. Filinto nunca chamava nomes a ninguém. Mas ele também sabia, tinha disso perfeita consciência, de que quem ficou na posse dos frutos do seu trabalho e imaginação não fazia, nem faz, a mais puta ideia do que tem em mãos. Porque a Grande Pintura, como a pura poesia, é e será sempre inacessível a quem pensa baixo. Esta foi a sua terceira, e derradeira, tragédia.