O CAMINHO FAZ-SE CAMINHANDO
1
Os que vinham atrás
Vinham à frente
Os que iam à frente
Gritavam este vento
Sílabas fortes sem cortinas
Os que vinham calados
Traziam os lugares, os nomes,
Palavras guardadas há anos
Bastava a tabuada da primeira
Para entender a libertação da peste
Não faltava ninguém
Nem as crianças
Tinham ficado em casa adormecidas.
A cidade ardia, risos
De entender tão de repente
Quando todos falaram
As casas escutaram
Fascinadas.
2
Estavas simplesmente no teu corpo
E sorrias,
Não pensavas no ouro
De que os economistas falam
Mas no outro que todos entendíamos
Nem a primavera em que adormecemos,
Nem o sol, as salinas,
E calor
Reclinavam os teus gestos
Em sabores a mel
É preciso vencer
Dar a mão ao dia
O mar pode apagar-se,
Dizias.
3
Dizias palavras de amor
Filho, árvore, rio,
Sons de gentes em viagem.
Era preciso escolher,
E escolhia-se.
Falava-se de medronhos
E de terra,
De pequeninas estrelas
E de casulos de onde sairiam
Risos regalados.
4
Ouviste já o silvo
Do tempo passado?
O pregão da peixeira usada,
Os caranguejos às arrecuas
Estacavam.
O homem que vendia atacadores
Desatava os nós
Que nos prendiam.
5
Sabes?
Há sempre no fundo da mina
Negra, cancerosa,
Outra luz,
Música a crescer como seio
As mãos,
As palavras,
As bandeiras,
Sem ilusões de óptica
No beijo mais simples.
6
O sangue gritava
Conhecemos
Esta raiz, este cravo,
Brotam do mais fundo
Sem caprichos
As águas abriam-se,
Azuis, ao fogo,
Sem degolarmos
Assim podíamos.
7
Mas havia outras vozes,
O cheiro quente da carne,
Sabores agora ao nosso alcance
Dançava-se a descoberta
De paragens
Onde se multiplicava
O pão,
Palavra sem aspereza,
Do pensamento.
8
E o mar crescia
Casa de música
E de amor pelos corpos
Recordava-nos
Os primeiros jogos
A frescura da relva,
A primeira mulher.
9
E eu amei-te
Na rua, em reuniões,
Nas escolas onde falei de ti
Nas estradas, nas aldeias
Onde me ofereceram toucinho
E te plantei
Em ouvidos espantados.
E o mar crescia.
António Augusto Menano, do livro inédito O CAMINHO FAZ-SE CAMINHANDO (1974-1975)