Cinema: Rosalie (1966, Walerian Borowczyk)

por Carolina Campos

Existem para mim duas categorias principais de contos de Guy de Maupassant: o sensorial e o balzaquiano. Todos eles abordam algum elemento da psique humana, de experiências de vida ou da sociedade da época, todos têm múltiplas camadas e todos são admiravelmente vívidos; mas alguns são mais centrados nos efeitos de uma história nos cinco sentidos, e outros em funcionar como fragmentos de uma Comédia Humana de finais do século XIX. O conto Rosalie Prudent, publicado em 1886, pertence à segunda categoria, e em 1966 foi adaptado pelo realizador polaco Walerian Borowczyk na curta-metragem Rosalie, que apresentamos aqui hoje.

Borowczyk (1923-2006) foi uma figura sui generis - chegou a ser descrito por críticos como “um génio que por acaso também é um pornógrafo”, porque no meio de uma filmografia bem eclética fez, por exemplo, um dos filmes da famosa Emmanuelle. Estudou pintura e começou por fazer pósteres de filmes na Polónia, e foi aclamado mas decidiu começar ele a fazer filmes. Inicialmente eram curtas de animação surrealistas, que mais tarde foram uma grande e abertamente declarada inspiração para a animação de Terry Gilliam. Foi viver para França, envolveu-se levemente com a Nouvelle Vague (um filme, Les Astronautes, em colaboração com Chris Marker), e passou a fazer filmes lá. A sua primeira longa-metragem foi também o seu último filme de animação, e os seus filmes seguintes, que lhe deram mais fama, juntam todas as influências do seu percurso: montagem inspirada na Nouvelle Vague, segmentos de animação stop-motion, pósteres marcantes. Tudo isto pode ser visto em Rosalie, curta vencedora de um Urso de Prata no Festival de Berlim e um belo exemplo de como adaptar um conto.

Rosalie Prudent relata o testemunho de uma jovem no seu julgamento pelo crime de matar o seu próprio bebé recém-nascido e o enterrar no jardim. O pai do bebé foi um caso que durou dois meses, ela era criada duma família rica e não podia deixar de trabalhar, e fez tudo para levar a cabo a gravidez sozinha – as roupinhas costuradas por ela para o bebé eram o que confundia mais o júri – mas depois em vez de um bebé nasceram dois, “logo eu, que ganho vinte francos por mês” diz ela. A narração vai acompanhando os comentários de bancada dos patrões de Rosalie e as reacções do júri, até chegar à sentença final. Borowczyk retira todas estas partes laterais na sua adaptação e reduz a história a um monólogo, Rosalie (interpretada pela sua esposa e actriz principal de muitos dos seus filmes, Ligia Branice) a dar o seu testemunho directamente para a câmara, complementado com cortes para objectos ligados ao caso.

Esta escolha tem dois grandes efeitos: primeiro, torna-nos a nós, que somos a câmara, juízes e júri do caso. Rosalie está a falar connosco, e nós somos deixados sozinhos com ela e com as provas para decidir fazer ou não julgamentos morais; qualquer ferramenta literária ou fílmica que pudesse ser usada para criar distanciamento (que aliás Maupassant usava bastante mas não em Rosalie Prudent) aqui é propositadamente removida. E segundo, são removidos também elementos que forçosamente localizariam a história no tempo. A sala do tribunal, as roupas de todos os que estariam à volta de Rosalie, os seus comentários, não se vê nada. Até a própria Rosalie, vestida de branco num fundo branco, passa grande parte do filme como apenas uma cara. Menos distanciamento ainda: Rosalie está aqui, e agora.

Os resultados estão à vista. No Letterboxd, uma “rede social para cinéfilos” onde se pode registar os filmes que se vê e opiniões sobre eles, os posts mais imediatamente visíveis sobre Rosalie consistem em pessoas a dizer o quão tocante e relevante acharam o filme tendo em conta políticas reaccionárias anti-aborto nos seus países.

Não surpreende Borowczyk ir buscar inspiração à literatura francesa – outros filmes dele foram baseados em Stendhal (Interno di un convento) e Prosper Mérimée (La Bête) – mas dada a sua reputação, seria de pensar que das duas categorias de contos de Maupassant ele se inclinasse mais para o lado sensorial. Contudo, mesmo filmes mais merecedores dessa reputação como Interno di un convento têm subtexto político, analítico, progressista. Antes de Maupassant, Balzac escreveu a Comédia Humana com o propósito de reflectir as questões prementes da sociedade da primeira metade do século XIX, incluindo e até especialmente as questões mais inconvenientes. Muitos contos de Maupassant, claramente influenciado por Balzac, fazem o mesmo para o final desse século, que já era um tempo diferente. E muito depois, Walerian Borowczyk transpôs este conto para um tempo ainda mais diferente, não como um artefacto do passado mas como algo que ainda tinha relevância.

Também cá em Portugal continua a ser um tema fracturante. Ainda há poucos meses, 18 anos depois do referendo que legalizou o aborto, o assunto voltou a ser abordado, em termos como “pró-vida” e “[criação de uma] comissão e plano nacional de promoção do direito a nascer”. Vídeos claramente anti-aborto passam na televisão financiados por um CEO-influencer. Falou-se momentaneamente de um novo referendo, para voltar atrás claro. E a disparidade económica cresce cada vez mais.

140 anos depois de 1886, 60 anos depois de 1966, Rosalie ainda está aqui, e agora.

.

Rosalie (1966, Walerian Borowczyk). Clique em CC para obter legendas em português.