EnCantar pela Paz – António Durães

Durante todo o mês de Agosto a Passarola está a editar uma série de artigos e pequenas entrevistas para dar a conhecer os artistas que participam no evento EnCantar pela Paz que, produzido pel’OdezanovedejunhoAssociação de Ideias, decorrerá de 3 a 27 de Setembro no Auditório Madalena Biscaia Perdigão.

António Durães e João Lóio – “Na Casa”, como Estragon e Vladimir, à espera de Godot

“Duas cadeiras, duas estantes, dois corpos, duas vozes. E é só”. É assim que, na sua folha de sala, é descrito o espectáculo “Na Casa”, que António Durães e João Lóio trazem ao EnCantar pela Paz – dia 3 de Setembro às 21.30h – no Auditório Madalena Biscaia Perdigão.
Mas é evidente que “Na Casa” é muito mais do que apenas isto – porque um espectáculo é sempre mais do que apenas a soma das suas partes – e António Durães e João Lóio são muito mais do que apenas dois nomes.
A João Lóio daremos em breve o destaque que merece a soberba obra que vem produzindo – trata-se afinal de alguém de quem Sérgio Godinho disse uma vez que “deve ser o mais bem guardado segredo da música portuguesa”. Hoje falamos de (e com) António Durães.

António Durães, natural da Figueira da Foz, é profissional de teatro desde 1986, vive em Braga e é professor de Interpretação na Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo (ESMAE) no Porto, desde 2001.
Embora já tenha pisado todos os grandes palcos nacionais, trabalhado com os mais prestigiados autores e encenadores, feito cinema e até televisão e seja actualmente um dos mais carismáticos e respeitados actores do teatro português e também um dos seus encenadores mais estimulantes, António Durães aparentemente ainda não desistiu da Figueira, aonde volta sempre que pode – para ver os amigos, dar um mergulho ou dois e fazer coisas. É sócio-fundador d’Odezanovedejunho, a nossaAssociação de Ideias, colaborador da Passarola e não se furtou a três questões e bastas considerações sobre João Lóio e o espectáculo que ambos trazem ao EnCantar pela Paz, que será o primeiro de uma tournée que os vai levar a outras salas e outras cidades.

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António Durães: A verdade é que não há grupo associado a este projecto. Há, isso sim, a vontade de um encontro entre dois artistas, António Durães e João Lóio. Para além disso (que é tanto) são dois cidadãos que se estimam, que coincidem em alguns momentos dos seus passados individuais e que, num momento específico, o início deste ano, conseguiram fazer coincidir os seus calendários e disponibilidade e vontade. Durante três meses, de forma regular, foram estabelecendo um diálogo artístico, procurando e encontrando entre os seus materiais, pontos (e pontes) de contacto de modo a tornar possível – e mais ou menos articulado -, um diálogo que nos pareceu coerente e que falava o que queríamos falar.
Esse diálogo, conversa de casa, em alguns momentos é terreno poroso, e convida a voz do outro a entrar pelo discurso do outro dentro, contaminando esse discurso tal qual ele foi criado, com o mínimo pudor possível. Uma voz dentro da outra voz.
Um diálogo que fala de muitas coisas. Logo à partida, fala da amizade, esse continente incontornável, procura até defini-la; fala do espectáculo (teatral ou outro), tal como ele vai sendo frequentado pelas vozes que os convocam; dos medos que esse problema de habitação (habitação do edifício performativo) faz medrar; fala da personagem, essa criatura mediúnica, que está entre o artista e a narrativa, sendo veículo essencial dessa narrativa; fala dos diferentes passados (sem querer ser um espectáculo autobiográfico, mas sendo-o), e de um sem número de outros assuntos, todos os que cabem em cerca de hora e meia de espectáculo, que é o tempo que este espectáculo tem.

O que é concretamente o espectáculo “Na Casa”?
– Estava precisamente a falar disso. Do que podemos encontrar neste encontro. Entre as canções que o João Lóio foi compondo para as mais diferentes instâncias (teatro, muita, mas também cinema, mas também espectáculos, discos, etc, para a sua voz e para as vozes de outros, em grupo ou artistas individuais), verificámos quais as que poderiam dialogar com os textos que entretanto eu escrevera.
O João Lóio já tinha, há uns anos, num CD que até foi distribuído pelo jornal Público, com uma tiragem extraordinária e que por isso foi muito popular, tratado de fazer alguns encontros num trabalho que se chamou assim mesmo, ENCONTROS. Nesse disco, que respeitava apenas a alguns momentos da sua própria biografia, artística e cívica, ele estabelecia conversas musicais com um conjunto de artistas, mais conhecidos uns do que outros, antecipando uma prática que agora é mais ou menos comum. Nesse disco, estavam parcerias com Sérgio Godinho, José Mário Branco, Jorge Palma, Zeca Medeiros, João Afonso, Maria Amélia Canossa, entre tantos outros, onde a partilha da palavra cantada já subentendia um diálogo. Num espectáculo a que tive ocasião de assistir, com José Mário Branco, Amélia Muge, João Afonso, João Lóio (pois), Manuela de Freitas (a excelsa actriz) e Regina Castro, essa experiência de colocar lado a lado palavras cantadas e palavras ditas, era um momento laboratorialmente relevante. Ao prepararmos este espectáculo, essa experiência foi muitas vezes comentada, relembrada, como o gesto mais ou menos fundador que deveria iluminar este outro. Aqui, neste show, acontece uma coisa diferente, mas só isso.
Primeiro:
quisemos que fosse a coisa mais simples do mundo: uma guitarra, um cantautor e um dizedor, três microfones, duas estantes, uma mesa, duas cadeiras. Como se estivéssemos NA CASA. Com este propósito: o cantautor canta as suas canções, numa selecção que concorre com as palavras faladas; e o actor diz as suas palavras, faz as suas narrativas, sendo que também é uma voz autoral. E nesse plano eles estão lado a lado enquanto autoridade do espectáculo. Concorrem para aquela narrativa. Como se chegassem, jograis de hoje, Estragon e Vladimir, e connosco (convosco) esperassem Godot.

Como surgiu a colaboração com João Lóio?
– Eu creio que o João Lóio, por aqueles dias, devia andar um pouco mais nostálgico. Um grupo de gente do Porto, das mais diversas proveniências, tinha decidido juntar-se para cantar as suas canções. Não exactamente nas suas costas, mas sem a sua participação. Chamaram-se CORO CORAGEM, organizaram ensaios e montaram um espectáculo a que chamaram JOÃO LÓIO É PARA CANTAR. Trinta ou quarenta pessoas, da música e sem ser da música, quiseram cantar as canções do Lóio. E a verdade é que encheram o Passos Manuel, paredes meias com o Coliseu, em duas ou três noites seguidas. Sem ele. Que esteve na plateia numa das noites, mas só isso. E ele deve ter sentido ciúmes. E neste entretanto, carregadinho de ciúmes, falámos e acertámo-nos para fazer este espectáculo. Montado o espectáculo, decidimos mostrá-lo no espaço MIRA, no Porto que, a abarrotar, recebeu muito bem a nossa conversa. Depois mostrámo-lo também em Braga, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva que, não estando esgotada (era dia de futebol e de selecção) ainda assim esteve quase cheia. E a recepção foi semelhante. Ou seja, boa. Os espectadores, quase todos conhecidos e cúmplices, mas nem por isso menos críticos e objectivos, validaram a nossa conversa.
Assim, passadas essas provas, começamos aqui na Figueira da Foz um caminho por outras salas e outras cidades. A partir dessa experiência.

– Como encaras o teu regresso ao convívio com o público figueirense?
– Não sei muito bem. Nem creio que se trate de um regresso. Nunca estive realmente fora, estando, ainda assim. A vida leva-nos para outros lugares. Outras exigências. Outras práticas. É o normal nesta profissão. Porque, antes de tudo, ou ao mesmo tempo não sei, trata-se de uma profissão. Ou seja, eu trabalho numa área que não tem existência formal e profissional aqui. Teria gostado muito (e fiz alguma coisa para que isso tivesse sido possível) de ter permanecido profissionalmente aqui, mas não foi possível. Gostaria de ter estado mais vinculado, mais próximo. E, ainda assim, estive o possível. Tentei vir vindo mostrar algumas das coisas que fui fazendo. E, na verdade, fui regressando. Ou fui estando. Portanto a apresentação deste espectáculo não é nem um regresso nem uma permanência. É um estar, estando. Só isso. Quanto à actividade artística, mesmo a teatral, devo dizer que conheço muito mal o território. Sei de algumas coisas que estão a acontecer, mas de menos para fazer uma qualquer avaliação. Ou ter, tão pouco, opinião. Mas estou solidário com todos aqueles que querem mexer, que aspiram à agitação das águas. Nesse sentido até fui estando presente. Solidariamente presente. Mas só isso.