EnCantar pela Paz – José Luiz Iglésias

Durante todo o mês de Agosto a Passarola está a editar uma série de artigos e pequenas entrevistas para dar a conhecer os artistas que participam no evento EnCantar pela Paz que, produzido pel’OdezanovedejunhoAssociação de Ideias, decorrerá de 3 a 27 de Setembro no Auditório Madalena Biscaia Perdigão.

José Luiz Iglésias: “o contexto actual tem vindo a reavivar a necessidade de uma arte mais crítica e participativa”

José Luiz Iglésias nasceu em Coimbra e reside actualmente nos EUA, para onde emigrou há cerca de quarenta anos. Era, na altura, professor de disciplinas de Engenharia Mecânica na Escola Secundária Bernardino Machado, na Figueira da Foz, e o tempo ainda sobrava para actividades como campanhas de “Reis” (janeiras) em benefício da CERCIFOZ, a peça de teatro Ciclomimo – Exercícios Combinados, em co-autoria com o António Durães na Ass. Naval 1º de Maio, e a Expedição Zero, para além de serões musicais no Dona Bárbara e no DOX.
Antes disso, porém, já tinha acompanhado José Afonso (com o qual gravou Com as Minhas Tamanquinhas, A Luta Continua, Per Le Cooperative Agricole Portoghesi e Enquanto Há Força), Adriano Correia de Oliveira, Fausto, Vitorino e Janita Salomé, Pedro Barroso (com o qual gravou Lutas Velhas, Canto Novo) e Teresa Silva Carvalho (com a qual gravou Ó Rama, Ó Que Linda Rama).
Nos Estados Unidos estudou música na Rutgers University (Newark, NJ) e exerceu actividade musical em campos tão diversos como ópera (Opera Onsite, New York, NY), música clássica (Duo Les Deux), música tradicional portuguesa (Companhia das Músicas), Teatro (Teatro de Cordel), produções musicais (Há Sempre um Mar e Viagens na Minha Terra) e fado.
José Luiz Iglésias, que também é sócio fundador d’Odezanovedejunho, prepara-se para dar três espectáculos na Figueira da Foz: a 10, 12 e 13 de Setembro, no âmbito do EnCantar pela Paz. Para este tour de force de três espectáculos notáveis, rodeou-se de músicos experientes, em distintas parcerias.
A Passarola quis saber mais da preparação destes três espectáculos, do seu vasto e diversificado repertório, se a cantiga ainda é uma arma e do seu percurso nos Estados Unidos. E as suas respostas chegaram antes dele – na volta do correio, agora electrónico – com a clareza de sempre. Ei-las:

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– Zé, como é a vida na América (e a vida de um português músico na América)?
– Nos Estados Unidos, residi primeiramente em New Jersey. Quando fui impedido de subir a palco para acompanhar o Manuel Vargas em canções do José Afonso, sob o pretexto de calçar sapatilhas (!), percebi que, se queria aproveitar a minha estadia nos Estados Unidos e crescer como músico, deveria estudar e ultrapassar as limitações da comunidade portuguesa. Fiz quase de tudo, desde construção à entrega de pizzas, passando por guarda-nocturno, ao mesmo tempo que estudava música na Rutgers University (Newark, NJ). Fundei escolas de música em diversas associações portuguesas, em New Jersey e New York, compus para teatro, TV e ópera, criei espectáculos musicais e ensinei matemática em duas universidades.

Fala-nos da génese dos três distintos espectáculos (com as suas diferentes parcerias) que te preparas para oferecer ao público figueirense.
Os espectáculos que vou fazer para o Odezanovedejunho (no EnCantar pela Paz) apresentam conteúdos muito diversos.
“Fado & Outras Canções Portuguesas” (dia 10 de Setembro), com a participação da Fátima Santos (voz), Leonel Lorador (guitarras clássica e eléctrica) e Jorge Iglésias (contrabaixo), é uma mistura de fado tradicional e contemporâneo, composições minhas e canções de autores que muito estimo, como o José Mário Branco e o Fausto.
“Les Deux” (dia 12) é um duo de música para guitarra clássica, com a participação de Leonel Lorador, o qual interpreta desde autores clássicos Latino-Americanos até aos Beatles.
“A persistência do gesto” (dia 13), com a participação de Fátima Santos, é um programa de música urbana, com obras de José Afonso, José Mário Branco, Adriano Correia de Oliveira e Carlos Paredes, entre outros.

Muito do teu repertório é música de intervenção, originalmente escrita e interpretada por grandes figuras de Abril, com alguns dos quais trabalhaste. Esta proximidade contribuiu para a escolha das músicas?
– Sem dúvida, a proximidade com grandes cantores de intervenção teve um impacto profundo na construção do meu repertório. Trabalhar com artistas cuja música esteve directamente ligada à resistência, à luta pela liberdade e à consciência social permitiu-me não só conhecer de perto as suas obras, como também compreender o contexto, a urgência e a emoção que lhes deram origem. Estas são, muito resumidamente, as razões que me levam, hoje e sempre, a interpretar Traz Outro Amigo Também (José Afonso) ou Abandono (David Mourão-Ferreira/Alain Oulman).

E consideras que ainda têm poder de intervenção hoje em dia?
– O canto de intervenção, embora menos presente do que em tempos passados, continua a ter poder em Portugal nos dias de hoje — ainda que esse poder se manifeste de forma diferente da que teve durante a ditadura ou no período revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril de 1974.
Durante o regime fascista, a liberdade de expressão era severamente limitada. Nesse contexto, o canto de intervenção surgiu como forma de resistência frequentemente dissimulada. Utilizando metáforas, símbolos e, por vezes, uma linguagem hermética, os autores criticavam a repressão política, a guerra colonial e a miséria sócio-económica. À laia de exemplos, José Afonso criava o O Cavaleiro e o Anjo (1968) e Adriano Correia de Oliveira dava voz a E Alegre Se Fez Triste (1971).
Com o 25 de Abril, surgiram composições abertamente revolucionárias, apelando à construção de uma sociedade mais justa, democrática e solidária. A canção de intervenção era agora uma ferramenta de participação activa na reconstrução do país. A Cantiga É Uma Arma (1975), de José Mário Branco, e O Patrão e Nós (1974), de Fausto, espelham bem este período de exaltação e voluntarismo.
O canto de intervenção de hoje é mais plural, menos panfletário, continuando, contudo, a denunciar as injustiças e a questionar o status quo. Surge de forma mais dispersa e fragmentada, muitas vezes integrado noutros géneros como o hip-hop, o rock ou a música electrónica. As temáticas também se diversificaram: além das questões políticas, aborda-se a crise climática, as desigualdades sócio-económicas, o racismo, a imigração ou a precariedade laboral. JP Simões, Capicua e A Garota Não são nomes que me vêm à cabeça, em registos e estéticas bem diferentes.
Hoje, o canto de intervenção já não tem o mesmo espaço nos meios de comunicação de massas nem o mesmo impacto colectivo. A música comercial domina, e o consumo é rápido e superficial, o que dificulta a divulgação de mensagens políticas mais profundas. Isto não significa, contudo, que o canto de intervenção tenha perdido a sua relevância. Além disso, o contexto actual — marcado por crises económicas, tensões políticas e o crescimento galopante da extrema-direita — tem vindo a reavivar a necessidade de uma arte mais crítica e participativa.