Neste 14 de Setembro, dia em que se celebra o Dia da Ecologia, uma iniciativa da Sociedade Portuguesa de Ecologia (SPECO) com a Comissão Nacional da UNESCO, a Passarola publica um texto sobre um estudo que a bióloga figueirense Carolina Campos realizou nas ribeiras urbanas de Coimbra, publicado na revista internacional Urban Ecosystems em 2024. Para fazer pensar um pouco sobre ecologia nas cidades.

Pela vida nas cidades
por Carolina Campos
Às vezes pensa-se na biodiversidade urbana um bocado como nas fotografias aéreas do Central Park em Nova Iorque: há espaços verdes e espaços cinzentos, distintos e delimitados, e os humanos circulam por onde querem enquanto que as plantas e os insectos e as aves e etecétras ficam nos espaços verdes. Mas em todo o lado pode haver vida para além de nós, não só os típicos pardais e pombas dos cafés, mas todo um mundo em cada rua e em cada edifício. Como dizia um professor meu, “há vida nas pedras”, dos bancos, das igrejas, dos monumentos. E essa vida melhora a nossa, também. Os líquenes a que ninguém liga nos troncos e muros podem ser indicadores de níveis de poluição, as aranhas entre as pedras podem comer mosquitos. A uma escala maior, as árvores fixam o solo e limpam e arrefecem o ar – a Câmara de Paris decidiu plantar milhares de novas árvores há poucos anos e já se nota a diferença. Ao contrário da Figueira, onde as árvores centenárias são cortadas impunemente e novos espaços são construídos para se andar a pé sem sombra sequer; e a vegetação das praias é arrancada para dar um ar mais limpo, deixando a areia à mercê do vento e a biodiversidade de uma terra costeira mais pobre. Todas as plantas participam nos ciclos de nutrientes que renovam o ar e os solos, junto com os fungos e invertebrados (insectos, moluscos) que vivem à volta das suas raízes, muitos dos quais nós nunca chegamos a ver a menos que vasculhemos na terra. E estudos já confirmaram que a existência de aves canoras audíveis, e espaços verdes visitáveis ou até só visíveis, contribui para a saúde mental das pessoas que vivem em cidades. Quem não se sente melhor ao ouvir um pássaro cantar pela janela, ou ao ver uma borboleta numa flor de um jardim? E o que é sabido nos meios mais rurais também pode ser verdade aqui: a ligação à natureza que isto cria fortalece a ligação ao próprio espaço onde se vive.
As ribeiras urbanas, o caso particular do estudo que aqui apresentamos, são pequenos cursos de água dentro de cidades, que provavelmente todos já vimos sem lhes prestar muita atenção mas que são cada vez mais importantes para a preservação dos ecossistemas. Eis a situação: as cidades têm vindo a crescer cada vez mais, o que significa mais urbanizações, mais estradas e auto-estradas, mais solo pavimentado em todo o lado. Isto leva a um fenómeno chamado fragmentação de habitats, em que os bocados de natureza que sobram são pequenos e separados uns dos outros. Pode haver um bocadinho de verde aqui e ali, mas muitos já não chegarão para as árvores e animais maiores que lá estavam antes, e a distância entre pontos com abrigo ou alimento poderá tornar-se demasiado longa para alguns animais percorrerem. O resultado é que espécies raras ou mais especializadas desaparecem, as que têm adaptações muito específicas (de polinização, por exemplo) levam ao declínio umas das outras, e no lugar delas passam a estar outras mais tolerantes e generalistas, e portanto mais comuns; os pontos de natureza tornam-se todos iguais uns aos outros e com muito menos diversidade que antes. As ribeiras urbanas são extremamente importantes porque funcionam como corredores ecológicos, ou seja, servem de caminho que muitas espécies podem usar para ir de um fragmento de habitat para outro e ter mais hipóteses de subsistir. E para além disto, também abrigam inúmeras espécies específicas de rios e ribeiras, desde plantas aquáticas a peixes, anfíbios, aves, insectos e moluscos de água doce. Neste estudo, que pode ser lido na íntegra (em inglês) aqui, pretendeu-se dar um foco especial às espécies maioritariamente terrestres que existem nas margens das ribeiras urbanas.
Os mesmos problemas que afectam os ecossistemas de forma geral também afectam as ribeiras: são reduzidas, reconduzidas ou cortadas pela urbanização, e a pavimentação dos solos à sua volta impermeabiliza muitas das margens, que deixam de conseguir absorver água e impedir cheias pelas cidades – que poderão vir a ser cada vez mais frequentes devido às alterações climáticas. Ainda mais, as actividades humanas podem poluir as águas, ou perturbá-las ao ponto de afugentar animais. Para estudar todos estes factores, este estudo investigou tanto a biodiversidade como o nível de urbanização de nove ribeiras de Coimbra. Para quem quiser saber como isso se faz, envolve muitas horas passadas dentro das ribeiras de galochas e a analisar fotos de plantas, a olhar para bichos e flores à lupa e para números em grelhas de Excel, e também a contar com a ajuda da Agência Portuguesa do Ambiente e da Administração da Região Hidrográfica do Centro, que forneceu dados de análises químicas da água das ribeiras. Nesta nossa era em que a investigação científica é cada vez menos financiada, convém relembrar que muito do que conseguimos aprender sobre os nossos ecossistemas e como os proteger é graças ao trabalho de instituições públicas como estas.
Feito todo o trabalho, quais foram as descobertas? Como seria de esperar, em sítios mais urbanizados há menos biodiversidade, mas com alguns pormenores interessantes. Alguns números: nos pequenos troços (100m) das ribeiras estudadas foram identificadas no total 80 espécies de invertebrados e mais de 160 de plantas. Duas espécies de plantas endémicas da Península Ibérica, a escrofulária-da-beira (Scrophularia grandiflora) e as bocas-de-lobo (Antirrhinum linkianum), estas últimas por acaso ao pé dos carris da estação de Coimbra B. Trinta e duas espécies exóticas, nove delas invasoras – todas elas plantas excepto a vespa-asiática. Traduzindo por miúdos todas as análises estatísticas: as ribeiras com mais solo impermeabilizado à volta tinham comunidades mais parecidas entre si, e diferentes das ribeiras menos perturbadas. Quanto mais pavimentado era um local, menos diversidade de plantas tinha, especialmente plantas tipicamente associadas a ribeiras (lógico), mas o mesmo não acontecia com invertebrados, em parte porque já muitos dos locais tinham as espécies que se vê em todo o lado, mais tolerantes e generalistas – a tal homogeneização dos ecossistemas. A pavimentação e características químicas da água ligadas às actividades humanas afectavam comprovadamente a distribuição das espécies menos tolerantes, muitas das quais já muito raras, e portanto sujeitas a desaparecer – uma delas a boca-de-lobo ao pé dos carris de Coimbra B.
Observações de aves nos locais de estudo revelaram algo interessante: uma fusão de avifauna de ribeiras com avifauna de cidades, garças a coexistir com pombas por exemplo. Esta é uma boa ilustração do que são os nichos ecológicos, os espaços muito específicos que as características de cada local criam e que exigem adaptações diferentes por parte das espécies que lá vivem. Vemo-los todos os dias, se prestarmos atenção: uma qualquer rua poderá ter líquenes e musgos só em determinados pontos dos muros, plantas que toleram ser pisadas entre as pedras da calçada, plantas menos tolerantes em cantos mais protegidos, ninhos de andorinha por baixo de telhas, teias de aranha em buracos. Cada um destes nichos cria condições às quais determinadas espécies se adequam mais que outras. A urbanização elimina muitos nichos dos ecossistemas naturais, mas pode criar outros. No caso das aves, o natural persiste e coexiste com o urbano, e espécies são atraídas tanto pela água doce que abriga plantas e insectos que aves ripícolas comem, como pelos restos da alimentação humana de que as aves mais cosmopolitas se aproveitam. Isto pode ser visto na Figueira nas praias, onde as gaivotas que vêm do mar se cruzam com as pombas a comer restos de bolacha americana. Nas margens de ribeiras de Coimbra, isto fez com que as aves fossem o único grupo de animais cuja diversidade aumentou com a urbanização. Noutros grupos isto não se verificou, os impactos negativos da urbanização são demasiado fortes.
O local com maior diversidade era o menos perturbado e mais afastado da cidade, como seria de esperar. O inesperado foi que os locais com menor diversidade, menos de metade da desse local mais afastado, eram jardins públicos – um deles uma ribeira rodeada de relva, que para além de preencher quase todo o espaço no solo envolve cortes frequentes. Existe a ideia de que todos os espaços verdes são bons para a preservação da biodiversidade, mas esse verde não estará a fazer muito se for praticamente só relva. Cobertos de relva levam a uma diversidade de plantas muito menor, e com isso uma diversidade menor de polinizadores e herbívoros. Uma forma possível de evitar isto, que já se faz em várias cidades, é deixar rectângulos delimitados por cortar, para que a vegetação silvestre continue a crescer e atraia insectos. Isto está a ser feito no Parque das Abadias na Figueira e é fácil constatar a diferença no número de espécies de plantas nesses rectângulos e no resto do parque. Pode-se dizer algo semelhante sobre as podas das árvores públicas: as podas bem feitas podem revitalizar árvores e eliminar ramos atacados por parasitas, mas as demasiado drásticas impedem aves de construir ninhos e arriscam a própria saúde da árvore. Por outras palavras, a intervenção camarária na vegetação pode ser positiva ou negativa, dependendo de se saber ou não o que se está a fazer.
Algo que Câmaras por todo o país poderiam fazer mais, e que por sinal é urgente no concelho da Figueira, é o controlo de espécies invasoras. Uma suspeita que este estudo confirmou foi que quanto mais afectado pela urbanização um ecossistema está, mais frágil fica, e mais vulnerável à proliferação de espécies invasoras. E nas ribeiras este é um problema grave porque elas ajudam nessa proliferação: plantas como as canas (Arundo donax) conseguem rebentar em qualquer lado onde um curso de água deixe bocados cortados ou partidos (depois de “limpezas” indiscriminadas, por exemplo). Espécies que sirvam de alimentação a aves, por outro lado, como a tintureira (Phytolacca americana), têm todas as aves frugívoras que por lá andam a ajudar a disseminá-las. As mimosas (Acacia dealbata) destacam-se entre as invasoras pela eficiência com que atraem polinizadores, que de tantas flores de mimosas e azedas (ou mijonas, Oxalis pes-caprae) infestantes que vêm, podem nem chegar às flores mais raras. Muitos destes locais tinham espécies tipicamente cultivadas a crescer espontaneamente, como roseiras – prova de que existe um caminho aberto entre os quintais privados e as margens de ribeiras mais próximas. Plantas invasoras cultivadas como ornamentais estão a um acaso de distância de serem disseminadas para toda a cidade, seja por cursos de água ou por animais, o que nos dá uma dica de algo que podemos fazer pelo ambiente: é necessário não só o controlo mas também a prevenção, que todos nós podemos praticar escolhendo espécies nativas para as nossas casas e jardins.
A biodiversidade numa cidade melhora a qualidade de vida das pessoas, e tal como as pessoas não é produto só do estado actual dum local, é produto de toda a sua história. Terrenos abandonados que já foram parques, edifícios abandonados que já foram escolas, fábricas desactivadas que mudaram a composição das águas para onde enviavam os resíduos, todas estas coisas têm efeitos no ambiente que podem durar tempo indefinido (veja-se a “Lagoa Azul” de Maiorca) ou ser revertidos (veja-se os novos projectos no Paço de Maiorca, ou o controlo de chorão-das-praias na Tocha que trouxe de volta as camarinhas desaparecidas). Mudanças para melhor podem ser mantidas, e para pior podem ser revertidas. Se houver vontade, e noção da importância da ecologia.
Trinta e duas das espécies identificadas neste estudo só foram vistas numa das ribeiras. Enquanto os dados ainda estavam a ser analisados, esse terreno foi arrasado. Era o local menos perturbado e mais rico, e enquanto o artigo era publicado, dizendo que essa ribeira devia estar no topo da lista de prioridades de conservação, muito do que estava lá desapareceu. Aquelas trinta e duas espécies podiam estar a cumprir algum serviço nos ecossistemas, mas devia valer a pena protegê-las mesmo sem isso. Podem já não estar lá, porque não quiseram saber delas. Tufos de erva-das-pampas permanecem, porque ninguém os tirou.