por Carolina Campos
Existe uma área da biologia chamada Etnobiologia, que estuda as formas como os humanos usam, classificam e pensam sobre o ambiente e a biodiversidade, nas diferentes culturas do passado e do presente. É um ramo multidisciplinar, que cruza a ciência com a história, a antropologia, a psicologia, as artes, e que pode revelar muito sobre nós e sobre o mundo à nossa volta. Aprende-se sobre a sociedade do Antigo Egipto olhando para as plantas que representavam em pinturas, por exemplo, ou sobre tradições portuguesas e a biodiversidade de outras eras ouvindo canções como Milho Verde e Ó Rama, Ó Que Linda Rama, ou lendo Miguel Torga e Aquilino Ribeiro. Existe um vaso, o vaso de Uruk, esculpido no actual Iraque há cerca de três mil anos, que mostra, de baixo para cima: água na base, depois as plantas cultivadas no delta do Tigre e do Eufrates, depois os animais que davam leite e aravam as terras, depois humanos em rituais religiosos com taças de fruta e cereais – a secção transversal de toda uma sociedade. Ao longo de toda a história da Humanidade, muito do que tem formado identidades, tanto individuais como colectivas, regionais e nacionais, é a ligação das pessoas à Natureza do sítio onde vivem – algo que essa invenção moderna que é a vida citadina pode fazer esquecer –, e arte que toca nisso regista essa ligação para a posteridade. E ajuda também a perpetuá-la: registos de sentimentos sobre a Natureza de um lugar podem manter vivos ou ressuscitar esses sentimentos, espécies ou paisagens podem ser transformadas em símbolos. Isto é muito prevalente no Médio Oriente, onde as grandes potências internacionais não conseguem ver uma casa sem a bombardear, ou ver famílias sem as deslocar à força. O que resta é a Natureza, o que sempre brotou e continua a brotar do solo, a terra aonde povos pertencem no seu estado mais irredutível e intemporal.
Saiu em 2024, através de apoios do Instituto Escocês do Documentário, um filme intitulado The Flowers Stand Silently, Witnessing (em português: As Flores Permanecem Silenciosas, Testemunhando). Consiste numa “intervenção” de Theo Panagopoulos, cineasta palestiniano radicado na Escócia, a filmagens que descobriu num arquivo, feitas por um missionário escocês nos anos de 1930-40 para mostrar a beleza da flora da Palestina, na altura sob ocupação britânica. Panagopoulos diz no filme que num total de 45 minutos das filmagens que usou, cheias de flores e de uma família britânica a apreciá-las e colhê-las, menos de 3 minutos mostram palestinianos. Usar plantas, colher plantas, olhar para plantas e mostrá-las, também isto é político. Se pelo menos desde os tempos do Vaso de Uruk que a vegetação é entendida e retratada como a base de uma sociedade sedentária, há noventa anos atrás um missionário do Império Britânico foi à Palestina exercer o corolário disso, comum ao longo de toda a história do colonialismo: a reclamação da vegetação de outro povo como uma reclamação da sua casa. Surgem no filme as frases: “Estas imagens de flores escondiam violência na beleza. Estas imagens de flores legitimaram o poder sobre outros. Estas imagens de flores trouxeram-nos aos dias de hoje.” Antes da Nakba a Palestina já era uma terra vista como passível de ser reclamada; a ideia central que este filme mostra, através de imagens de flores, a cores, é que o que nos trouxe aos dias de hoje não está ligado necessariamente aos argumentos apresentados a favor de Israel. Foi o próprio imperialismo; a permissão, que continua até agora, do pensamento e acção coloniais, que desde então simplesmente mudaram de cara. São imagens belas, as primeiras captadas a cores na região, e serviram o propósito de tomar posse dessa beleza, de a tirar às pessoas que estavam activamente a ser apagadas da paisagem, e que Panagopoulos resgata daqueles 3 minutos e traz para primeiro plano, reclamando assim a própria terra de volta. Há uma imagem no filme que diz muito: ramos de uma planta espinhosa, talvez uma romãzeira, torcidos (pelo missionário?) para se parecerem com uma coroa de espinhos em cima de um pano vermelho, uma transformação à força das plantas de uma terra ocupada numa imagem do ocupante – sem sangue à vista mas uma imagem incrivelmente violenta pelo sangue implícito, não de Cristo mas de um genocídio, de dimensões que este missionário não podia adivinhar mas que ele ajudou a legitimar. Contudo, lembra Panagopoulos, as flores têm sementes, e voltarão a renascer. E, de facto, romãs e melancias são símbolos da resistência palestiniana; as romãs – estamos agora na época delas em Portugal, por acaso – já há muito tempo símbolo da fertilidade e da prosperidade pela grande quantidade de sementes que produzem. O povo, tal como as sementes, permanece.
Onde isto foi recentemente mostrado, por exemplo, foi em Eu Lembro Eu Esqueço (I Remember I Forget nas plataformas online), o último álbum de Yasmine Hamdan, lançado no mês passado. Hamdan, libanesa, é tida há mais de vinte anos como um ícone dos nichos ditos subterrâneos da música do mundo árabe, fundindo sons modernos com influências antigas da música e poesia do Médio Oriente, e cantando em vários dialectos do árabe como o libanês, o palestiniano e o egípcio. Eu Lembro Eu Esqueço é o seu primeiro álbum em oito anos e foca-se muito na Palestina, com letras tanto de poetas palestinianos contemporâneos como de cantigas de resistência contra o domínio Otomano do século XVI. “Este álbum é sobre […] a sensação de viver em dois sítios ao mesmo tempo. Às vezes sinto que é absurdo porque estou a viver aqui, mas também a viver o tempo da guerra que está ali”, disse ela numa entrevista à revista The National, que resumiu este álbum com “a tensão entre o aqui e o ali.” E nos vídeos que acompanham as músicas, lá estão as flores. Aviões de guerra a voar sobre campos de girassóis, papoilas como as que se vêm nas filmagens do missionário escocês, bosques em chamas, mulheres a colher cereais e a dançar com cestos de flores e frutos, cravos, rosas, montes de flores secas despedaçadas, muros cobertos de jasmim, e romãs com sumo que parece sangue e sementes que se espalham por todo o lado.
Yasmine Hamdan vive actualmente em França. Theo Panagopoulos na Escócia. Aqui em Portugal, saiu este ano um livro intitulado Chuva de Jasmim, de uma poetisa palestiniana, Shahd Wadi, que veio viver para cá e escreve agora em português, também sobre a tensão entre o aqui e o ali. Aprendeu português em adulta e não o usa como falante nativa, dá toques à gramática e voltas a expressões que só poderiam vir de um olhar externo sobre a língua, e ela própria diz que mantém esses elementos na sua escrita como afirmação do seu sotaque palestiniano e do seu direito a ocupar espaço na língua portuguesa como imigrante. E algo que é claro em Chuva de Jasmim é que Wadi não usa o português dos comunicados de imprensa e dos jornais, nem o português do saudosismo patriótico e do nosso-senhor-nos-acuda; Wadi escreve no português de Abril, com vampiros que comem tudo e cantigas que são armas e Grândolas com som de gravilha e “Falastin árabiya sempre / sionismo nunca mais”. Os preponentes do português do saudosismo patriótico acharão isto uma perversão, e é precisamente contra esses que esta fusão de culturas se vira e destaca as semelhanças entre os nossos povos, os dois a lutar contra fascismos que são o mesmo com caras diferentes.
A artista e realizadora iraniana Marjane Satrapi disse uma vez, como mensagem ao povo americano, que “o mundo não está dividido entre Ocidente e Oriente. Tu és americano, eu sou iraniana, mas falamos juntos e entendemo-nos perfeitamente. A diferença entre ti e o teu governo é muito maior que a diferença entre ti e mim. E a diferença entre mim e o meu governo é muito maior que a diferença entre mim e ti. E os nossos governos são iguais.” Neste momento em que vivemos, de extrema-direita em ascensão, de ódios absurdos alimentados pelos meios de comunicação para manufacturar consentimento para cada vez mais actos de opressão e violência neocolonialista, é preciso lembrar isto. Chuva de Jasmim fala da tensão entre o aqui (“na terra do mais ou menos. / Nem isto, nem aquilo, um vai andando. / Um bacalhau demolhado, nem cru nem cozinhado. Não é extremamente nem extremamente, é.”) e o ali (“Como todas as casas palestinianas / a minha também começa / o poema”) ao mesmo tempo que os une. Com algumas das mesmas lutas (“O patrão que não perdoa do patrão do chefe da patroa do patrão do patrão do patrão tem deus. / Deus é um filho da puta.”), e, o motivo para estar a ser referido aqui, com algumas das mesmas flores.
As plantas e flores são uma presença constante no livro, e percorrem todos os pontos aqui falados. O título, Chuva de Jasmim, vem de uma mulher chamada Eman que ao ver a Palestina a ser incessantemente bombardeada disse “rezo para que chova jasmim”. O poema Interrupção fala da pátria no intervalo “Entre o pinheiro e ontem. (…) Entre Yafa e agora. / Entre o esquecimento e o parto. / Entre a morte da papoila.” O poema Alucinações sobre flores meio ano depois, sobre um florista morto em Gaza, começa citando versos de uma poetisa palestiniana sediada nos EUA, Noor Hindi, “Os colonizadores escrevem sobre flores. / Eu conto-te como as crianças atiram pedras contra os tanques israelitas / segundos antes de se transformarem em margaridas”, e fala da relação entre o colonialismo e a posse da vegetação de forma semelhante a Panagopoulos: “E não é que as flores no arquivo do ocupante mantêm o seu nome: / Scabiosa Palestina, Adonis Palestina, Cota Palestina / Terra Palestina”. Procurando estas plantas no Google, os resultados são sites sobre “a flora de Israel”.
Mas muitas plantas também existem cá. O chá de medronho surge como símbolo da identidade palestiniana, e o medronheiro é bem conhecido dos portugueses, e dos figueirenses que já tenham andado pela Serra da Boa Viagem. “Uma figueira, serei Palestina. / Se fosse minha, seria possessiva.” Um dos poemas chama-se A buganvília e o caminho, sendo buganvília em árabe manjuna, que também significa “a louca”, e esta louca depara-se com a buganvília nas formas de todos os muitos nomes comuns que tem em português: a Primavera, Três Marias, Santa-Rita (“A descer / todos os santos ajudam / menos a Santa Rita”), uma Roseta, um Riso. E no centro de tudo, os cravos, vermelhos. “Também neste abril, meio ano depois, não / haverá exportação de cravos de Gaza. / Ó mundo, aprende os nomes dos números. / Antes do bloqueio, Gaza enviava ao mundo mais / de quarenta milhões de cravos por ano.” O Estado Novo usou uma ligação romantizada das pessoas à fauna e faina do mar para perpetuar o fascismo em Portugal, e depois foi uma flor, de uma florista como o que foi morto em Gaza, o símbolo do derrubar desse fascismo, e o símbolo da prosperidade da Palestina para uma poetisa que escreve em português de Abril. O entorpecimento e alienação do povo que favoreciam o Estado Novo também favorecem o Estado de Israel e o novo fascismo português que se começa a instalar, e enquanto acharmos que somos diferentes, nós aqui e eles ali, vamos continuar a ser virados uns contra os outros cá em baixo enquanto as classes dominantes lucram com isso lá em cima. Temos de conhecer o poder das palavras e das imagens, e saber olhar para o que nos põem à frente. Tudo é político, até olhar para plantas; e entre Portugal e a Palestina, muitas são as mesmas.
Israel tem dois sistemas de Inteligência Artificial que usa para coordenar bombardeamentos em Gaza, a que chama Evangelho (um descendente tecnológico da coroa de espinhos de romãzeira) e Lavanda. Shahd Wadi escreveu em 2024:
Ontem gostava de lavanda.
Hoje, meio ano depois, 50 anos depois, 76 anos depois,
gosto mais de cravos.
Ilustração: Cravos (Dianthus caryophyllus), de Hans-Simon Holtzbecker (guache sobre papel velino, 1649-1659).


