Memória histórica – Luís Wittnich Carrisso (1886-1937)

por Fernando Campos

Colher plantas, semear ideias

Luís Carrisso nasceu na Figueira da Foz e foi um dos mais notáveis naturalistas portugueses do século vinte. O seu nome é homenageado na taxonomia botânica, nomeadamente no género Carrissoa da família Fabaceae (onde se inclui a Carrissoa angolensis) e no epíteto específico da espécie Dissotis carrissoi da família Melastomataceae. Também foi presidente da Câmara Municipal de Coimbra, Reitor interino da universidade, Presidente da Comissão de Obras da cidade Universitária e Presidente da Junta de Construção do Ensino Secundário e Técnico.

Quando, em 1918, Luís Carrisso foi nomeado professor catedrático e 15º director do Instituto Botânico da Universidade de Coimbra,  Portugal era ainda, e já havia quatro séculos, o garboso detentor de um império em África. Mas “ó glória de mandar! Ó vã cobiça...”, não fazia a mais puta ideia das gentes que o habitavam, nem dos animais, nem das pedras, nem das plantas. De facto podiam-se escrever compêndios inteiros de antropologia, zoologia, geologia e botânica com tudo o que Portugal ignorava do seu imenso império. Pois foi isso mesmo que Luís Carrisso fez; e não apenas no que diz respeito à botânica: na sua primeira viagem (em 1927) ficou “enfeitiçado por África” (quem não?) e na segunda (em 1929) percorreu 6.000 km em Angola onde estudou a flora, a fauna, as potencialidades económicas, as condições de vida social e os problemas locais. Segundo Fátima Sales, da UC, “Carrisso foi mais um homem de acção, um explorador, um condutor de homens, do que um investigador de laboratório. (…) ficou memória de várias conferências vibrantes e sempre, sempre frontais na apreciação que fazia da sociedade portuguesa.”

Luís Carrisso enfrentou os problemas decorrentes de escasso pessoal e dotação financeira (o sempiterno calvário de quem se interessa por ciência em Portugal) mas desenvolveu todas as componentes do Instituto (Jardim, Laboratórios e Herbário) com dinamismo e imaginação sabendo rodear-se de bons colaboradores. Quanto ao Herbário, em 1921 convidou para o lugar de assistente e jardineiro-chefe o licenciado Francisco d’Ascenção Mendonça, que mais tarde haveria de o acompanhar nas suas três missões recolectoras a Angola. Organizou várias herborizações em Portugal e desenvolveu colaboração com amadores, alguns antigos alunos, que regularmente enviavam material das então colónias portuguesas. Nesse tempo não havia nem grandes colecções de África em Coimbra nem uma biblioteca adequada. Dado que as melhores colecções e conhecimentos sobre a flora de Angola estavam em Londres, no British Museum, Carrisso estabeleceu, então, uma colaboração oficial entre o Conselho da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra e o museu britânico. Em 1934 convidou Arthur Wallis Exell(1) (naturalista experimentado em trabalho de campo e de herbário) para tomar conhecimento dos trabalhos já iniciados em Coimbra. Convidou John Gossweiller(2) com o mesmo objectivo. Organizou a visita de Mendonça aos herbários de Londres e Berlim-Dahlem tornando-o num naturalista cosmopolita. Mas foram as suas actividades em África, as quais duraram dez anos difíceis, que dimensionaram substancialmente o Herbário em mais de 25.000 espécies e lhe permitiram compilar o monumental Conspectus Flora Angolensis (ainda hoje inacabado) e outros estudos da flora de Angola.

No total, as três viagens somaram cerca de 30.000 km, mais do que os 28.000 km da rede de estradas de Angola à época. O material de herbário colhido durante estas expedições foi juntar-se às colecções do alemão Friedrich Welwitsch (1806-1861) e de Gossweiller, constituindo o todo material de referência de uma parte muito interessante de África. De facto, Angola estende-se dos paralelos 5º (incluindo Cabinda) – 18ºS e dos meridianos 12º –24º cobrindo uma variedade enorme de habitats, da floresta tropical ao deserto, da orla marítima, passando pela longa escarpa até ao vasto planalto interior o qual, no seu extremo este, vê passar o rio Zambeze. Espécies novas descritas de Angola têm muitas vezes distribuição ou em todo o sul da África ou na África central — daí a grande importância destas colecções históricas.

Em Fevereiro de 1937 Carrisso e os seus companheiros de Coimbra partiram de Lisboa rumo a Luanda. Lá juntaram-se a Exell, sua esposa e Gossweiller e iniciaram a sua terceira e derradeira viagem. A 14 de Junho de 1937 a expedição subia um morro conhecido pelo nome de Kane-wia(3) e colhia plantas, a 102 km a sul da cidade do Namibe (antiga Moçâmedes). Carrisso sentiu-se mal e aí morreu, de síncope cardíaca, com o cajado numa mão e um molhe de plantas na outra, a 2 km do Morro das Paralelas, onde está sepultado. Tinha 53 anos. Não teve filhos. Publicou artigos científicos. Colheu plantas. Semeou ideias.

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1) Arthur Wallis Exell (1901-1993), botânico inglês formado por Cambridge (1926), que durante perto de três décadas exerceu funções no Museu Britânico. Participou em três expedições científicas realizadas em África, de que resultou a publicação de obras ainda hoje consideradas de referência para o estudo da flora daquele continente.
2) Johannes Gossweiler, botânico suiço (1873-1952) que trabalhou para o governo colonial  português de Angola desde 1899 até à sua morte. Fez importantes colecções em todos os distritos de Angola e criou (1939) o primeiro mapa fito-geográfico daquele país.
3) Kane-wia  – literalmente “quem o subir não volta”, em idioma tchierero (língua do povo mucubal).

Na foto (provavelmente da autoria de Arthur W. Exell): Francisco Mendonça, Luís Carrisso, a senhora Exell e Gossweiller (1937).