Um culto da ignorância

por Isaac Asimov
tradução e notas por Carolina Campos

Vivemos num país onde as pessoas, regra geral, não lêem. Notícias, ficção, poesia, seja o que for. A publicação com maior tiragem em Portugal é o Correio da Manhã e não chega aos 40 mil exemplares impressos – e as outras com tiragens acima de 20 mil são o Expresso, a Maria, a TV 7 Dias, a Nova Gente e a TV Guia. Raul Minh’alma é o maior sucesso de vendas de livros no país e gaba-se de já ter vendido 600 mil exemplares no total de toda a sua obra. Pedro Freitas, de nome artístico Poeta da Cidade, começou a ser referido como um fenómeno da poesia nacional depois de 1,600 exemplares vendidos. Poder-se-ia dizer muito para lá dos números, mas só pelos números, num país com quase 11 milhões de pessoas, o caso está crítico.
Os resultados estão à vista. Mesmo na era da internet (que é ainda mais para a frente que as eras da rádio e da televisão), o quanto se lê continua a ser um bom barómetro do quanto se aprende, e do quão aberto se está para o que é novo ou diferente. E o sucesso das notícias falsas e demagogices que vão singrando cada vez mais é sinal de que se aprende muito pouco e se anda muito fechado. Algo tem de ser feito.
Este é o presente em que vivemos. Surgem portanto duas questões. Como é que chegámos a este ponto? E que futuro cria uma sociedade que não lê? Para propor respostas e lançar ideias sobre o que fazer em relação a tudo isto, trazemos uma tradução de um artigo do escritor e cientista americano Isaac Asimov (1920-1992), publicado na revista Newsweek em 1980. O que ele observou, sentindo-se preso entre uma população geral que não queria aprender e uma comunidade académica politicamente conservadora que se achava acima de ensinar, conserva uma actualidade alarmante 45 anos depois, e aplica-se à situação em que Portugal se encontra.

Um culto da ignorância

         É difícil argumentar contra aquela antiga justificação da imprensa livre: “O direito da América a saber.” Parece quase cruel perguntar, ingenuamente, “O direito da América a saber o quê, por favor? Ciência? Matemática? Economia? Línguas estrangeiras?”
         Nenhuma dessas coisas, claro. Na verdade, poder-se-ia supôr que o sentimento geral é que os americanos estão muito melhor sem essas tretas.
         Há um culto da ignorância nos Estados Unidos, e sempre houve. A pressão do anti-intelectualismo tem sido uma linha constante a serpentear pela nossa vida política e cultural, alimentada pela falsa noção de que a democracia significa que “a minha ignorância é tão boa como o teu conhecimento.”
         Políticos têm-se frequentemente esforçado para falar a língua de Shakespeare e Milton tão agramaticalmente quanto possível de forma a evitar ofender o seu público ao parecer que andaram na escola. Assim, Adlai Stevenson1, que descuidadamente permitiu que inteligência e aprendizagem e sagacidade se revelassem nos seus discursos, viu o povo americano dirigir-se em debandada para um candidato presidencial que inventou uma versão da língua inglesa que era só dele e que tem sido o desespero de satíricos desde então.
         George Wallace2, nos seus discursos, tinha, como um dos seus alvos principais, o “professor de cabeça pontiaguda”, e com que furor de aprovação essa expressão era sempre recebida pela sua audiência de cabeças pontiagudas.
         PALAVRAS SONANTES: Agora temos um novo slogan da parte dos obscurantistas: “Não confiem nos peritos!” Há dez anos, era “Não confiem em ninguém com mais de 30 anos.” Mas os que gritavam esse slogan descobriram que a inevitável alquimia do calendário os tinha convertido no ar suspeito dos que têm mais de 30 anos, e, aparentemente, decidiram nunca mais cometer esse erro. “Não confiem nos peritos!” é absolutamente seguro. Nada, nem a passagem do tempo nem a exposição à informação, alguma vez irá converter os que gritam isto em peritos em qualquer assunto que possa concebivelmente ser útil.
         Temos uma nova palavra sonante, também, para qualquer pessoa que admire a competência, o conhecimento, a sabedoria, a aprendizagem e a capacidade, e que deseje difundi-los. Pessoas assim são chamadas “elitistas”. Esse é o termo mais engraçado alguma vez inventado porque pessoas que não são membros da elite intelectual não sabem o que é um “elitista”, nem como pronunciar a palavra. Mal alguém grita “elitista”, torna-se claro que ele ou ela é um elitista no armário que se sente culpado por ter andado na escola.
         Pois bem, então, esqueçam a minha pergunta ingénua. O direito da América a saber não inclui conhecimento de assuntos elitistas. O direito da América a saber envolve algo que se pode expressar vagamente como “o que se passa”. A América tem o direito a saber “o que se passa” nos tribunais, no Congresso, na Casa Branca, nos conselhos industriais, nas agências de regulação, nos sindicatos laborais – nas cadeiras do poder, geralmente.
         Muito bem, eu sou por isso, também. Mas como vamos fazer com que as pessoas saibam tudo isso?         Garantam-nos uma imprensa livre, e um grupo de repórteres de investigação independentes e destemidos, surge um clamor, e podemos ter a certeza que as pessoas saberão.
         Sim, presumindo que sabem ler!
         Ora o que temos perante nós é que ler é um daqueles assuntos elitistas de que tenho estado a falar, e o público americano, grosso modo, na sua desconfiança de peritos e no seu desprezo por professores de cabeça pontiaguda, não sabe ler e não lê.
         Sejamos claros, o americano médio sabe assinar o seu nome de forma mais ou menos legível, e consegue entender as manchetes de desporto – mas quantos americanos conseguem, sem dificuldade, ler até mil palavras consecutivas em letra pequena, algumas delas trissilábicas?
         Ainda para mais, a situação está a piorar. As pontuações de leitura nas escolas estão em declínio. Os sinais da autoestrada, que costumavam representar lições elementares de má leitura (“Go slo” [em vez de “go slow“], “Xroad” [em vez de “crossroad“]) estão consistentemente a ser substituídos por pequenas imagens que os tornam internacionalmente legíveis e incidentalmente ajudam aqueles que sabem conduzir um carro mas, por não serem professores de cabeça pontiaguda, não sabem ler.
         Também em anúncios televisivos há frequentemente mensagens impressas. Bem, mantenham os olhos nelas e verão que nenhum publicitário acredita que qualquer pessoa para além do ocasional elitista consiga ler aquilo. Para se assegurarem de que mais do que essa minoria capta a mensagem, todas as palavras são ditas em voz alta.
         ESFORÇO HONESTO: Se é assim, então como têm os americanos o direito a saber? É certo que há certas publicações que fazem um esforço honesto para levar ao público o que este deveria saber, mas perguntem-se quantos efectivamente as lêem.
         Há 200 milhões de americanos que a certa altura das suas vidas já habitaram salas de aula e que admitirão que sabem ler (presumindo que lhes prometem não usar os seus nomes e envergonhá-los perante os seus vizinhos), mas a maioria dos periódicos decentes crê ter uma prestação fantástica quando têm tiragens de meio milhão. É possível que apenas 1% – ou menos – dos americanos tente exercitar o seu direito a saber. E se tentarem fazer seja o que for com base nisso muito provavelmente serão acusados de serem elitistas.
         Eu proponho que o slogan “O direito da América a saber” não tem qualquer significado quando temos uma população ignorante, e que a função de uma imprensa livre é virtualmente zero quando quase ninguém sabe ler.
         O que podemos fazer em relação a isto?
         Podemos começar por nos perguntarmos se a ignorância é afinal tão maravilhosa, e se faz sentido denunciar “elitismo”.
         Eu acredito que todo o ser humano com um cérebro fisicamente normal pode aprender bastante e ser surpreendentemente intelectual. Eu acredito que aquilo de que precisamos desesperadamente é aprovação social da aprendizagem e recompensas sociais por aprender.
         Podemos todos ser membros da elite intelectual e então, e só então, poderá uma frase como “O direito da América a saber” e, de facto, qualquer verdadeiro conceito de democracia, ter algum significado.

21 de Janeiro de 1980, in Newsweek

1Adlai Stevenson – Político democrata que se candidatou duas vezes à presidência dos EUA, e perdeu ambas as vezes para Dwight D. Eisenhower
2George Wallace – Governador do Alabama que começou a obter sucesso em eleições nos anos de 1960 depois de se tornar mais radical em questões raciais, e chegou a proclamar “segregação agora, segregação amanhã, segregação para sempre.”

Vemos então que entre os EUA que Asimov via em 1980 e a vida por cá, muito está na mesma, e se calhar sempre esteve. A boa notícia é que cada um de nós pode ajudar a contrariar esta tendência, para uma sociedade melhor em que se valoriza a aprendizagem individualmente desde criança e se colhe os frutos disso colectivamente toda a vida, e para evitar que os nossos George Wallaces cheguem ao poder. A vitória do anti-intelectualismo e das posições anti-ciência – por parecer demasiado complicada, por parecer uma seca, porque o lado oposto ao científico explica tudo de forma mais simples (e mais alarmista), porque dá menos preocupações abstractas – a vitória da preguiça intelectual e das suas consequências desastrosas está já à vista. Já é preciso arrancar-lhe essa vitória das mãos, mas ainda não é demasiado tarde.
Como disse uma vez o actor Ethan Hawke, “Eu aconselho sempre os jovens a serem pretensiosos. Porque se o fizeres com sentido de humor, é sinal de que tens aspirações. Temos de definir objectivos, mais vale serem ambiciosos.” E como disse Antonio Gramsci, “Agitem-se, porque precisamos de todo o vosso entusiasmo. Organizem-se, porque precisamos de toda a vossa força. Estudem, porque precisamos de toda a vossa inteligência.”

Ilustração: A Parábola dos Cegos, de Pieter Bruegel o Velho (1568)