Olhemos um pouco em volta de nós

por Cristina Torres

nota prévia

Nascida em Roscommon, na Irlanda, em 20 de agosto de 1842, Edith O’Gorman emigrou para a América em 1848. Em 1862 juntou-se às Irmãs da Caridade, tornando-se Irmã Teresa de Chantal. Residiu durante seis anos no Convento de São José em Hudson City, Nova Jersey. Em Janeiro de 1868 saiu ou, como mais tarde afirmou, “escapou” do convento. Em 1871, publicou Convent Life Unveiled: The Trials and Persecutions of Miss Edith O’Gorman, uma auto-biografia que causou enorme escândalo, teve inúmeras edições e foi traduzida em várias línguas. Nela Edith contou, com “nomes, datas e factos, desafiando assim toda e qualquer contradição”, as muitas crueldades que teria suportado durante seu tempo como freira (desde a ingestão forçada de vermes como castigo por infracções menores até uma tentativa de estupro por um padre). Logo depois encetou, ainda na América e posteriormente na vitoriana Inglaterra, onde posteriormente se fixou, uma série de palestras em que, sempre acompanhada pelo escândalo, e anunciada como “the escaped nun”, detalhava ao pormenor os horrores da vida conventual.

Em Portugal, já no século XX, o livro de Edith O’Gorman conheceu pelo menos três edições que causaram grande repercussão, dando argumentos à luta positivista “contra os manejos do fanatismo” do ensino jesuítico, durante a vigência da primeira República. A quarta, e última, de que tivemos acesso a um exemplar na Biblioteca Municipal, é de 1932 – já em pleno Estado Novo. Foi uma arriscada decisão do editor (a Livraria Triunfo Edª, de Lisboa), que lhe acrescentou um corajoso prefácio de Cristina Torres, mesmo estando consciente de que “nos apertados dias que correm”, como anotou em advertência, o livro iria desencadear “as cóleras da reacção dominante”. E assim foi, como todos sabemos.

O discurso límpido e comovido de Cristina Torres ainda nos interpela – porque se mantém, infelizmente, de surpreendente actualidade: hoje, em outra vez  apertados dias que correm, para além do regresso de novos e quase quotidianos escândalos em colégios religiosos, o velho jesuitismo (agora degenerado em mil novas fórmulas ou estirpes, leigas e liberais, evangélicas ou pentecostais, cada vez mais agressivas e dogmáticas) também está de volta com o seu discurso melífluo e insidioso. As cornetas da reacção dominante proclamam de novo o velho prestígio do pensamento mágico, a mesma propaganda anti-ciência, o mesmo culto da ignorância e do dinheiro e o mesmo desprezo pela cultura e pelo livre-pensamento – mas desta vez de forma ainda mais perversa, pervertida e enviesada  – a par do sacramental amor de deus e da ditosa pátria armada, agora até festeja a família tradicional portugueza no Dia Internacional do Trabalhador.

O texto de Cristina Torres é um lúcido e doloroso testemunho dos malefícios da educação para o conformismo com a fatalidade; mas também um luminoso e eloquente libelo contra a idolatria, o fanatismo, a superstição, o preconceito e o obscurantismo.  Por isso mesmo a Passarola decidiu reeditá-lo, o que acontece pela primeira vez depois de quase cem anos incompreensivelmente encerrado num livro que foi interdito. Decidimos naturalmente fazê-lo na sua ortografia original. Porque jamais ousaríamos submeter uma única palavra da Professora Cristina Torres ao enxovalho póstumo de um infame revisionismo ortográfico.

Olhemos um pouco em volta de nós

 “Que instruam na prudência as mulheres moças,
que amem a seus maridos, queiram bem a seus filhos”.
(Epístola de Paulo a Tito).

            Por vezes a Vida com as suas dôres e as suas imperfeições leva-nos ao desânimo. Diante dos nossos olhos passam, num caminhar desordenado, as vítimas de paixões terríveis, de dôres inenarráveis, de martírios sem consolação.
            Às dôres morais, nascidas de tantas causas diferentes, acrescem as dôres físicas, geradas pela fome, pela doença e pelo desamparo.
            Somos nós, os que pensamos e que nada podemos, – a não ser repartir o esforço do nosso trabalho e do nosso pensamento, dia a dia, pelos mais pobres de espírito – somos nós que mais sentimos essas dôres, porque não as podemos mitigar.
            Ah! a Vida, a Vida que podia ser bela se bem a soubessemos compreender!
            Olhemos um pouco em volta de nós. A sífilis, o cancro, a tuberculose alastram e destroem. Famílias inteiras morrem de fome, desamparadas, miseráveis, sem nem ao menos terem a ampara-las na desgraça a faculdade de lutar para vencer.
            O mais forte destroi o mais fraco, sem piedade pela sua fraqueza.
            O homem abusa da mulher sem respeito por ela e por si próprio.
            A criança chora de fome pelas ruas, sem que as portas das casas de beneficência sejam bastante amplas para as deixar passar a tôdas.
            E será assim durante largos anos, enquanto o equilíbrio desejado não se realizar; enquanto se não limarem agudíssimas arestas, unificando esforços, realizando aspirações de Paz e Igualdade.
            Para que êsse equilíbrio se realize é preciso que trabalhem chamando à Vida, cheia de dôres, – e que mais dolorosa será se isto não fizermos -, os que tenham bôa vontade e bom ânimo, alheios a vaidades de títulos e a subtís remédios, que apenas marcam pela elegância física que quem os aconselha.
            A obra de Regeneração tem de ser feita pela preparação consciente do indivíduo em frente da miséria e da dôr. Temos de lhe mostrar a chaga purulenta, para que o remédio, mesmo violento e duro, seja recebido como necessário. Temos de educar a criança, não nas doiradas ilusões dos contos de fadas de moral antiquada e falsa, mas na realidade amarga, de que ela tem de se transformar num valor, para ter o direito de viver.
            A noção errada da Vida que se pretende ainda hoje dar à criança!
            Como é habilidoso fazer-lhe recitar frases ôcas que ela não percebe, ladaínhas que ela decora como se fosse um papagaio.
            “Não penses, minha menina! Fecha os olhos; a Vida é tão feia! Embala-te em histórias de fadas; cria para ti um mundo irreal e caminha para êsse precipício que é a sociedade, para quem não aprender a defender-se dos seus êrros e defeitos – aqueles a quem não deixaram preparar para ser na existência um elemento reconstrutivo”.
            E é nêste momento que a luta se trava medonha e forte entre o que foi e o que será, nêste momento em que o embate das paixões pode ter conseqüências gravíssimas, que a educação conventual pretende reconquistar o terreno, que a ciência e a longa experiência dos maus resultados obtidos lhe fizeram perder. E nêste momento, quando pedagogos e professores, atormentados pela dúvida, procuram o método a empregar; quando a criança nos preocupa como um remorso e uma esperança, – remorso pela vida que tem, esperança pelo que poderemos fazer dela -, é nêste momento, que a mulheres sem cultura e sem conhecimento próprios, enganadas pela vida isolada, sem contacto com o mundo, se entrega a educação da futura mulher do operário revoltado e infeliz, aconselhando-lhe a resignação inutil dos que se refugiam no isolamento de uma cela, ou entre as árvores de um triste jardim conventual.
            O isolamento religioso! Eu não sei como se pode viver sem a luz do Sol, sem ar puro e sem comunicar com o nosso semelhante.
            Não sei como é possível isolarmo-nos do resto do mundo, não sofrer os seus sofrimentos, não palpitar com as suas alegrias, não admirar as conquistas do Pensamento humano, do trabalho e da inteligência.
            Não sei para que servem essas teorias de abdicação inutil dos mais puros sentimentos, das mais delicadas afeições.
            A renúncia ao mundo! Como é falsa essa afirmação de perfeição suprema, representada pelo abandono do lar, pela indiferença de sofrimento, na aspiração única do bem-estar próprio, da indiferença por tudo o que não faça parte das regras da Igreja – que tão afastada anda do sofrimento real dos Povos, que tão pouco perspicaz se mostra actualmente, supondo que o futuro será o que ela quiser que seja:
            Voltar para trás. Regressar à vida ignorante da Idade Média, às crenças supersticiosas transformadas em milagres grosseiros, presenciados pelos ignorantes e pelos simples de espírito. Destruir tudo o que a ciência tem feito para explicar os factos que então eram considerados sobrenaturais.
            Cobrir a miséria com o veu da caridade. Disfarçar com a aparência de dó a necessidade de preparar as gerações para ordeiramente, numa conquista de inteligência e de respeitabilidade moral, se diminuir até destruir a miséria e o crime que tantas vezes tem a origem nos prejuizos de castas, na superioridade do dinheiro.
            “Resigna-te à tua sorte e serás feliz no outro mundo. Isola-te em oração e conquistarás o Ceu” diz-se à rapariga formosa e amorável. “Modifica a tua alegre juventude e serás mais perfeita. Baixa os olhos para a terra, onde terás a tua sepultura. Pensa sem cessar no dia da tua morte”.
            Numa palavra – Procura alcançar um lugar na eternidade, não afirmando-o pelo Bem que espalhas, mas pelo isolamento do teu Eu, pela destruição da tua inteligência, pela miséria, por tudo o que não seja a tranqüilidade da tua existência.
             E como essa indiferença pelos outros deforma caracteres, tornando áridos corações amoráveis, transformando raparigas novas em velhas de espírito, acanhadas de pensamentos, e cuja inteligência desaparece nos longos jejuns, nas visões celestiais, no martelar de frases, que a maioria, pela sua ignorância, não pode compreender!
            Não falemos dêste livro para o elogiar, que não precisa de elogios, tão humana e tão simples é a sua linguagem.
            As cenas que Edite nos conta passaram-se em Portugal, na Espanha, na França, em todos os países onde a educação conventual se faz sentir.
            Sentir-se há mais e mais no nosso país, daqui a alguns anos, tão intensa é hoje a sua propaganda.
            São de ontem, são de hoje e serão de amanhã se, com um trabalho sensato, sem atropelos e sem violências, lhes não opusermos a resistência da nossa vontade e dos nossos sentimentos, em bases de sólida pureza moral e mental.
            Recordemos os rápidos progressos feitos na vida portuguesa pelo fanatismo e pela ignorância. Recordemos a campanha de ódio contra instituições, que não comunguem nas mesmas ideias, que tentem fazer prevalecer o livre exame sôbre o dogma, e reconheceremos que se não trabalharmos com todo o entusiasmo seremos vencidos.
            Tudo é invadido. À hora da morte o pobre, que ansioso espera uma palavra de esperança, que espreita no fulgir dos olhos do médico alguma luz que fortaleça o seu desejo de viver, ouve o murmurar das resas que lhe falam de agonia, a ameaça que lhe fazem do inferno e do purgatório. Não lhe basta muitas vezes a tristeza do pobre lar desfeito, é preciso que pense, – pobre desgraçado que viveu trabalhando e sofrendo -, nos horrores que o esperam além-túmulo.
            Eu conheço casos abomináveis. Atribuo-os à grosseira religião de alguns, à pequenez de espírito de outros.
            Conheço famílias que martirizam na derradeira hora o homem probo e bom que viveu na prática do Bem e que lhes deixou tôda a liberdade, conservando a da sua consciência!
            Conheço famílias que as filhas abandonam, sem um adeus de amor, sem uma lágrima de ternura, para irem, nas paredes de uma cela, cuidar da sua salvação eterna!
            Conheço casais adoráveis, olhados como leprosos morais, porque não casaram religiosamente.
            Conheço crianças olhadas com horror desprezativo porque não são baptizadas catòlicamente.
            E conheço ainda santas criaturas que, cuidadosas do bem celestial seu e o dos outros, não hesitam em fomentar na terra a discórdia do lar, dizendo mal do esposo à esposa, do pai aos filhos, diminuindo a autoridade paternal, destruindo a união da família, em nome dum Jesus de bondade e justiça que prègou um amor entre os homens, com base na felicidade humana.
            São repetição do que nos conta Edite Ó’Gorman; – perseguições que sofrem todos os que abertamente se declaram contra os preconceitos religiosos e contra a educação conventual.
            Venho do cemitério. Acompanhei à sua última morada um rapaz de 23 anos, que se sentou nos bancos da minha Escola aos 12. Era alegre, honesto, puro nas suas ideias e na sua vida. Morreu sem mácula. Tuberculizou-se há cinco anos e desde então arrastou uma vida que talvez pudesse ter sido salva, se a sua condição social fosse diferente e se, de cada vez que uma aparência de saúde o animava, não tivesse de ganhar o duro pão de cada dia.
            A família fica sem nada. Deve na farmácia, na mercearia e talvez tenha de dever durante alguns meses a terra onde vai transformar-se em flores, que as mãos da pobre mãe disporão, o seu pobre corpo inanimado.
            Tanta miséria, tanta!
            E tanto dinheiro mandado para Roma, tanto!
            Tanto dinheiro gasto nas bordaduras doiradas dos hábitos talares, na ornamentação das imagens, nos subsídios às casas religiosas.
            Tanto que nem o pudemos contar!!!