memória história – Cândido Costa Pinto

Salvador Daqui e “um homem complicado”

por Fernando Campos

Cândido Costa Pinto é o caso exemplar do artista cuja relevância e influência, na pintura e nas artes gráficas, tem sido incompreensivelmente diminuída ou relativizada. A modesta fama de que desfruta deve-se sobretudo às capas que desenhou para a Colecção Vampiro, da editora Livros do Brasil, cujos originais ainda são disputados como tesourinhos nas leiloeiras.

A importância de um artista afere-se, no entanto, pela quantidade e qualidade de novos signos (conceitos) que introduz no léxico da arte do seu tempo. Neste sentido, Cândido Costa Pinto foi um dos mais notáveis e influentes artistas portugueses do século vinte. Todavia e apesar de, entre especialistas e entendidos, isto ser pacífico, o facto de ter sido um artista inquieto e difícil de catalogar e, confessadamente, “um homem complicado”, tem contribuído, juntamente com a conhecida tradição portuguesa de incensar mediocridades, para adiar o merecido reconhecimento público que a relevância do seu contributo para a linguagem da arte em Portugal justifica (este género de coisas não é contudo muito incomum na história da arte: Rembrandt, por exemplo, só foi “descoberto” no século dezanove e Caravaggio apenas no fim da segunda guerra).

Para além de pintor, caricaturista, ilustrador de imprensa e publicista, foi também produtor e realizador de cinema documental (foi num documentário seu que Carlos Paredes se estreou como compositor de bandas sonoras para o cinema); e também escreveu textos teóricos e reflexões críticas como “Função da arte, do design e da comunicação”, “Surrealismo, arte e política” e ensaios sobre o “Complexo Conceptual”, sobre o “Biomorfismo” ou sobre as técnicas a óleo produzidas pelos pintores flamengos.

Em 1995, a Fundação Calouste Gulbenkian promoveu uma retrospectiva da sua obra que não chegou todavia para o arrancar de um injusto esquecimento, que ficou bem ilustrado pelo facto de, em 2011, o centenário do seu nascimento ter passado despercebido – até, incompreensivelmente, na sua terra natal. 

Cândido da Costa Pinto nasceu na Figueira da Foz em 20 de Maio de 1911 e foi um artista precoce: a sua iniciação fez-se no atelier do pai, que se dedicava às artes decorativas. Com doze anos publicou o primeiro trabalho, uma caricatura, num jornal regional. Em 1931, fundou em Coimbra, onde estudava, o Grupo dos Divergentes, onde pontificavam nomes como Arlindo Vicente e o futuro arquitecto Alberto Pessoa, em atitude de desafio contra a estética presencista. Aos dezoito anos contraiu a tuberculose e passou os dez anos seguintes entre sanatórios. Segundo mais tarde contou, salvou-o a «magia da arte» – os símbolos das várias religiões do mundo gravados num colete de zinco e cobre comprado a um refugiado polaco. Esta terá sido a primeira manifestação do pendor místico de um singular e estranho pintor surrealista que investigava o segredo da pintura flamenga e se auto-retratava com símbolos bizarros.  No início dos anos quarenta, instalou-se em Lisboa. Já nesta altura estava próximo do surrealismo, corrente em que se inserem os seus quadros mais conhecidos, como Mulher da época (1941) e Aurora hiante (1942). Estes revelam alguma influência de Salvador Dalí, que não deve ter escapado aos mais atentos, já que, segundo se conta, os funcionários da Livros do Brasil lhe chamavam Salvador Daqui. A par da pintura, trabalhou como designer gráfico sucessivamente para a Companhia Portuguesa de Higiene e para os CTT e ainda como freelancer, tendo produzido cartazes, selos, ilustrações e capas de livros e caricaturas (é sua a última caricatura de Salazar autorizada pelo regime, em 1941).

Em 1947 foi a Paris, onde conheceu Breton e o seu círculo, assinou o manifesto “Rupture inaugurale, projectando participar na exposição “Le Surréalisme” em 1947 e, muito embora o seu nome conste do catálogo, Breton acabou por não expôr o seu quadro. Este acontecimento e discrepâncias de atitude e de entendimento do Surrealismo acabariam por originar uma grande desilusão perante o grupo francês. No entanto, voltou a Lisboa encarregue por Breton de formar um grupo surrealista em Portugal. Reuniu e liderou o chamado Grupo Surrealista de Lisboa, de que faziam ainda parte Mário Cesariny, Alexandre O’Neill, António Pedro, António Dacosta e Vespeira, entre outros, mas foi expulso ainda antes da primeira exposição do grupo em 1949, por aceitar expôr em espaços associados ao regime, atitude que por razões políticas não podia ser aceite pelos seus colegas. Em 1951 participou na primeira Bienal da Arte de S. Paulo.

O Surrealismo de Costa Pinto é fortemente influenciado pelo academismo figurativo de Dalí, em cenas narrativas de marcada dimensão alegórica ou de acumulação fragmentária de citações devedoras também de Bosch. Este trabalho conviverá, a partir de 1945, com uma vertente abstracta que se tornará preponderante na sua obra.

Em 1962, já com 52 anos, incompreendido e desiludido pelo ambiente artístico português, emigrou para o Brasil, onde acabou por falecer a 28 de Maio de 1976.

O Museu Municipal Dr. Santos Rocha possui uma assinalável colecção de obras de Cândido Costa Pinto (muitas provenientes de um acervo doado pela sua viúva). Entre estas obras consta a primeira, ou uma das primeiras, pinturas abstractas da pintura portuguesa. Data de 1945 e chama-se “Início”. Houve um tempo em que esteve em exposição permanente, como merece, ao lado de outras obras importantes de artistas figueirenses (como o Latoeiro, de Mário Augusto, por exemplo). Se quereis saber porque deixou de estar, ide ao Museu e perguntai porquê. Podeis dizer que ides daqui.

Ao alto, à esquerda: Início/Introdução (1945), óleo sobre madeira, 25,5x37cm, Museu Municipal Dr. Santos Rocha.
Ao alto, à direita: Auto-caricatura (1938), desenho a carvão, 29,5×22,5cm, Museu Municipal Dr. Santos Rocha.