Manifesto

O capitalismo isola as pessoas. A religião consumista aliena-as dos seus hábitos comunitários. O logro ilusório das “redes sociais” acentua esse isolamento e alienação e alimenta o comodismo, o individualismo e a negação da consciência crítica e da acção colectiva. Numa sociedade dominada pela indústria do entretenimento, este funciona como escape, não só à dura realidade da vida mas sobretudo – como referiu Adorno – à tentação de resistir a essa realidade. E é preciso resistir. Até porque o fascismo também vem aí.

A vida sórdida e a estupidez patrocinada corroem as consciências, como o caruncho faz ao
madeiro, com o seu ruído devorador.

Os meios dominantes de comunicação comercial difundem-lhe o sinal: simplificam o complexo até ao esquemático; esmiúçam o óbvio até ao ridículo; esburgam a irrelevância até ao absurdo e desdenham a notoriedade até à humilhação. O belo, avacalha-se; o decente, emporcalha-se; o digno torna-se equívoco; o justo torna-se suspeito; a ciência, descredibiliza-se; a arte, anedotiza-se; a verdade, relativiza-se; a mentira, normaliza-se. O gosto não se discute – tudo se deglute, integrado na mesma narrativa: a narrativa do “sempre foi assim e não pode ser de outra maneira” que, xaroposa e bafienta, apela ao tédio e ao torpor, ao velho conformismo do gado que vegeta.

Na cultura e nas artes, este vasto programa de imbecilização geral também prossegue, implacável: o fácil, o banal, o sentimental, o raso, o acessível e o literal são incensados diariamente. O hábito de pensar é inconveniente e o de criticar pretensioso. Toda a complexidade é subversiva e a mínima originalidade impertinente. Há cada vez menos espaço para verdadeiros criadores e cada vez mais palanque e amplificação para a animação e o entretenimento alarves, e os seus apresentadores histriónicos, e para a produção de conteúdos sem substância, e os seus curadores circunspectos.

Na Figueira da Foz também. Como não podia deixar de ser. O vácuo ocupa cada vez mais espaço – na verdade, todos os espaços: os de concerto, os de representação, os de exposição e os de edição (pela primeira vez desde o advento da imprensa, não existe hoje na Figueira uma única publicação com periodicidade inferior a mensal).

E contudo ainda existe vida inteligente;

à margem disto, ainda existem artistas verdadeiros, jovens e menos jovens, músicos, cantores, actores, fotógrafos, pintores, desenhadores, escultores, com verdadeiro talento, voz própria e algo autêntico para dizer – todos exilados do olhar de um público inerme que, apesar de tudo, também ainda resiste.

Foi por isso que nasceu Odezanovedejunho, que não é feira nem feriado, nem sequer dia-santo;

é o nome de uma Associação de Ideias e de amigos da cultura.

O nosso programa é ambicioso e envolve todas as artes.

Para resistir, e fazer a festa acontecer.